ATENÇÃO: Isto é um fanfiction, escrito para servir como crítica de cinema, e não como roteiro comercial, ou seja, sem fins lucrativos. Sugiro que se veja primeiro o filme, e depois se leia o fanfiction, ou melhor, o fansrev (acrônimo de Fan Screenplay Review, ou Revisão de Roteiro Por Um Fã) abaixo. _ Wagner RMS.
A missão International Space Committee - ISC - Aurora é um esforço internacional de exploração do Sistema Solar, e é composta por (a) veículo (sonda Aurora) que deveria executar sondagens e pesquisas por toda a área próxima a Marte, incluindo asteróides cruzadores da órbita do planeta vermelho; (b) três equipes de pouso, que deveriam se revesar por cerca de 24 meses, na construção de bases fixas na superfície de Marte, em suas luas e, se possível, em um dos asteróides visados, e explorar todos estes alvos. A transcrição de gravação abaixo, editada para sua conveniência, seria a versão final do que aconteceu com a equipe de pouso Aurora 2, em seus últimos dias na superfície de Marte antes de serem recolhidos pela sonda Aurora, conforme descrito por Vicente Campos, Oficial Comandante e Engenheiro de Sistemas da missão. A divulgação total ou parcial deste conteúdo é passível de prisão, multa e confisco de bens.
GRAVAÇÃO DE RAIO ZULU 7524 CONECTADO, INÍCIO DA TRANSMISSÃO.
Eu tenho cerca de quinze a trinta minutos.
(Um pouco de estática enquanto a antena se alinhava)
Vou resumir tudo. E torcer pro Aurora Lander não reentrar antes do fim.
(Silêncio)
Na verdade, eu não sei ao certo... Não sei ao certo por onde começo.
(Silêncio)
Sim, ah, merda, óbvio, ok... Vou morrer aqui, daí, desculpem, mas não dá pra ser muito delicado.
Então… Na verdade, a situação começou bem antes de nós, quando a primeira equipe de solo construiu e habitou a Base Tantalus. Imagino que já tenham entendido do que eu estou falando, Marko Young, o biólogo que desapareceu. Nenhum corpo, nenhum vestígio, os demônios de areia, essas tempestades que riscam Tantalus, elas enterraram os restos do azarado, depois de algum defeito no traje. Quem mandou andar sozinho? Mas o fato de o equipamento de perfuração e análise do cara ter ficado por lá, com o painel solar aberto, e emitindo de vez em quando dados e pings de localização, criou um clima meio sombrio, meio idiota entre nós, e surgiu o papo furado sobre ele ter encontrado algo… Bem, agora eu sei que é bem provável mesmo que o cara tenha encontrado algo. Lembro dele da Terra, nos treinamentos, texano, intragável, mas muito inteligente. Deve ter ido atrás de algo, sozinho. Vai ver para ficar somente para ele a glória da descoberta.
Encontrou e foi encontrado. O que o encontrou teve quase oito meses para, a bem da verdade, digerir e entender o cara. Digerir, espero, no sentido de metáfora.
Eu não posso me prolongar, então lá vai. Existe vida em Marte, e de algum modo ela é especializada em nós, ou é especializada em qualquer outra forma de vida, em estudar elas e sobreviver através delas, ficando especializada em nós por causa do Marko.
Vocês vão entender. Recebemos liberação para estudar a área onde Marko desapareceu, pela primeira vez em meses as tempestades ciclônicas deram um tempo, e alguém no Controle da Missão ficou curioso com a boataria em torno dos demônios de areia, e estava longe deles o suficiente para mandar os buchas de canhão aqui para averiguar.
Eu, Lane e Dalby fomos destacados por Brunel para resgatar o equipamento de Marko. Chegamos lá no Rover dois. Dalby ficou nele, enquanto eu e Lane… Deus, sinto falta de Lane… Eu e Lane subimos as rochas aplainadas e fomos triangulando, por triangulação unitária mesmo, já que mais uma vez os satélites estavam fora do ar, e, por sorte, depois de cerca de uma hora, encontramos os equipamentos do pobre astronauta perdido, estranhamente arrumados numa depressão, havendo lá, inclusive, um tablet que tinha sido meticulosamente desmontado. A noite estava caindo, e foi o pisca-pisca da luz da antena da sonda perfuratriz, na escuridão da fenda, o que nos atraiu e nos levou direto pra lá. O cabo de força serpenteava, para fora da depressão, e o painel solar estava ligado a ele, aberto e fixo no chão com estacas, os redemoinhos de areia só faziam limpar os painéis, sem arrancar, e era por isso que eles funcionaram sem parar. Comentei que aquilo não parecia o trabalho de um biólogo.
(Silêncio)
Estávamos há cerca de meia milha do Rover.
“Alguém está tentando entrar na câmara de compressão”, eu lembro até do tremor na voz dela. A base avisou que ninguém tinha nos seguido. Lane e eu corremos de volta. Dalby começou a entrar em pânico. Eu já estava gritando algo como “calma, Dalby, use o painel, trave a comporta!”, e ela dizendo “Eu travei! Quem é?! É algum tipo de pegadinha, Campos? Parem com isso! Estão me assustando! Eu travei, eu travei a comporta externa, mas quem tá aqui sabe o código de emergência!”, e ela começou a chorar e a gritar pedindo, depois implorando que parássemos com a brincadeira! Houve um barulho de descompressão, e nós, Lane e eu, tentamos correr mais rápido. Eu descobri no voo pra cá pra Marte como sou ruim para oxigenar artificialmente, daí então, correndo e berrando dentro de um traje pressurizado, meu CO2 atingiu o limite rapidamente, Lane continuou, disposta e ágil como sempre, mas eu tive que parar pra recuperar a porra do fôlego. Dalby já não gritava mais. Lane chegou lá primeiro, ela sempre foi a mais esforçada e rápida de nós todos.
(Silêncio)
Nunca mais encontramos Dalby, a nossa Dalby de doces olhos azuis.
(Silêncio. Vicente tosse)
Quanto consegui entrar no Rover, só Lane estava lá, parada.
Então ela apontou para o que ela tava olhando, e lembro que meu estômago revirou. Era o capacete de Dalby.
(Silêncio um pouco mais longo)
Procuramos por várias horas, aquela noite, até as baterias do Rover ficarem perigosamente baixas. Ninguém poderia ter certeza de que outra tempestade de areia não desabaria por ali. Mesmo assim pedimos permissão à Base Tantalus para ficarmos por lá. Estávamos em choque, ainda querendo que Dalby voltasse, de algum modo. Brunel fez bem em nos mandar de volta à base, estávamos nos pondo em perigo, e logo os ciclones de areia começaram a dançar por lá, na verdade em toda a região, seria um risco estúpido dormir no Rover.
A transmissão do Comandante para nós foi mais ou menos assim “quero que voltem antes de terem que esperar pelo sol para recarregar as baterias. Desculpa, gente, mas se não encontraram Dalby até agora, minha prioridade passa a ser a segurança de vocês dois” e mais ou menos aqui, nesta altura, houve interferência e uma voz diferente entrou na transmissão, dizendo algo tipo “tragam Aurora de volta”.
Foi apenas um instante, uma frase, mas gelou o sangue de todo mundo.
Lane brigou comigo, não aceitando, racionalizando aquilo, mas Brunel escutou, e tenho a impressão, pelo silêncio relutante dele, que o Comandante achou a mesma coisa que eu. Era a voz rouca e desleixada do texano que treinou com a gente na Terra. Brunel, depois de um tempo, achou que fosse vazamento da memória do diário de missão gravado. O sotaque interiorano e norte americano quase desaparecido, mas que merda, tenho certeza que era o Marko.
Nos reunimos com Brunel e os outros, na sala comum da Base Tantalus, pouco depois de nós chegarmos lá. Irwin tentou seus psicologismos em nós, Lane e eu. Eu estava muito nervoso, mas louco ainda não. Agora não sei, mas ali, naquele instante, eu tinha certeza que Irwin poderia ir se foder.
Contamos tudo de novo pro Brunel, pois viemos o caminho todo discutindo sobre o que aconteceu, e o Comandante orientou Harrington a solicitar instruções ao Controle da Missão, ou seja, vocês aí na Terra. Mal Harrington se sentou na console de comunicação, ele se virou para o sistema ao lado, aquela outra grande tela com as imagens das câmeras externas, chamando a gente para ver, tinha alguém lá fora, entre as rajadas de areia dava para ver alguém, o contorno muito confuso de um traje pressurizado. Um de nós, não lembro direito, talvez a Kim, que chegou por último à reunião, perguntou se não poderia ser a Dalby. Eu, que costumo ficar na minha, mandei calar a boca, Dalby tava morta. Kim Aldrich, mulher de pavio super curto, tava me dizendo para mandar minha mãe calar a boca, ou algo assim, quando Irwin, que havia chegado perto de Harrington e da tela das câmeras, deu um pulo para trás.
Outra sombra apareceu! Agora havia duas silhuetas lá fora.
Aquilo era insano pra gente! O pessoal da sonda Aurora ainda estava longe. Dalby tava sem oxigênio havia horas, e Marko havia meses. Mas não havia ninguém mais em Marte que pudesse estar lá fora, naquele momento! Ficamos como que paralisados, vendo as sombras bruxuleando, distorcidas pela areia, não nos mexemos mesmo quando essas sombras começaram a vir na nossa direção.
Brunel quebrou o silêncio, mandando Harrington enviar a mensagem para o Controle da Missão na Terra, e que ele entrasse em contato com a sonda Aurora. Neste instante percebi pelo canto de olho que a sonda Aurora estava manobrando para entrar em órbita. Foi a nossa última transmissão para vocês na Terra, antes desta aqui, vocês devem ter recebido uns oito minutos depois que Harrington enviou. Os visitantes levaram uns cinco minutos para chegar à nossa eclusa de ar. Um momento antes deles chegarem, quando Kim percebeu a trajetória e resmungou que eles estavam vindo direto pras eclusas de ar, eu agarrei o Comandante e disse que o que tava lá fora sabia os códigos de emergência, que mesmo que nós lacrássemos a comporta, eles iam conseguir entrar!
CONTINUA… Parte 2.
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Caríssimos leitores, segue a primeira parte de um novo texto. Como faço habitualmente com as histórias aqui publicadas, será uma parte por semana, até o final (este não é um texto de degustação, será publicado na íntegra). Neste conto, um tanto crítico, outro tanto irônico, um cara comum mergulha em um mundo de paranóia, ciência, e conspirações, tentando encontrar a si mesmo dentro de um prisão que ele crê eterna!
Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"
A Xícara
Novamente, novamente e novamente. Todo dia era — quase, havia os quanta — tudo sempre igual. Quando a moça loira (antes havia sido morena, ou um rapaz, ou ainda uma senhora adorável cor de avelã, mas a entrega era sempre a mesma) lhe entregou, escorregando por sobre o balcão, a xícara de porcelana cheia de fumegante e cheiroso café, puro, preto, Milton Steinberg se arrepiou todo, como se fosse a peça de porcelana uma víbora! Então ele olhou em torno, só percebendo naquele instante que estava na cafeteria, a mesma de ontem, de antes de ontem, de todos os dias! Olhou de novo para a xícara, pois logo a superfície do café vibraria, captando, com suas ondulações, a explosão distante, e tudo recomeçaria, de novo e de novo.
— O de sempre, senhor Milton. — Falou a atendente, com seu sorriso claro e sardento, como se o conhecesse há anos, como se fosse ela mesma que lhe entregasse aquela mesma xícara (seria a mesma? Átomo a átomo?) toda manhã.
Sua mão trêmula pegou a xícara por cima, como quem pega um pote de alguma coisa perigosa. Foi neste instante que a jovem atendente viu a pistola na outra mão de Steinberg e foi recuando, dizendo:
— Ai meu Deus, ai meu Deus...
O homem armado arregalou os olhos, fitou a arma em sua outra mão, como se a visse pela primeira vez, embora soubesse claramente como ela tinha ido parar lá. Depois, com um movimento brusco da cabeça, relanceou em volta novamente, esticando a cara para fora da cafeteria, e foi então que ele viu homens uniformizados! Policiais, carcereiros! Encostados em uma viatura, não muito distantes dali, conversando soturnamente. Milton olhou de volta para a atendente, que, acuada, continuava rogando a Deus e a ele por misericórdia. Com um olhar de súplica, Milton apontou a pistola para a jovem, que se encolheu, mas se calou, chorando baixinho. Talvez, pensava o homem, suando e tremendo, mesmo que atirasse nela, ela, no dia seguinte, voltaria, ou talvez a versão idosa dela. Steinberg sentia um nó na garganta, o peito oprimido, talvez tivesse que atirar, o sistema estava ali, em torno dele, novamente, novamente e novamente, cada parte agora eternamente corrupta do sistema impelindo seu dedo no gatilho, talvez para atirar em si mesmo, antes que fosse arrastado e trancado por toda a eternidade em uma cela (onde quer que ficasse, naquele dia eterno, jazeria para sempre). Sem saber o que fazer, ele baixou um pouco o punho armado, percebendo que aquilo era inútil, terrivelmente consciente de que o dia, novamente, novamente e novamente, o levou até aquela xícara, ele chorou, agoniado.
Frente de Onda e Déjà Vu
A vida cotidiana é o veneno que se encarrega de envelhecer e enfim matar as pessoas. Ao menos Milton Steinberg pensava assim, quando, pela terceira vez naquela semana, despertou de mau humor, comeu alguma coisa, se banhou e vestiu, pegou a pasta tiracolo, pendurou no ombro, e saiu para trabalhar, às seis, como de costume. Brasileiro invulgar, não tinha a faculdade comum aos seus compatriotas de rirem no caos, e certamente devia ser julgado extremamente mal por isso, cercado de gente que ria enquanto era tratada como escrava por seus servidores públicos, administradores e pela comunidade economicamente dominante, de um modo geral. Não que Milton não sorrisse. Sorria quando via um azul perfeito no céu, ou algum raro ato de bravura ou bondade na rua. Mas em geral apenas enxergava pessoas fingindo que o que elas estavam fazendo tinha alguma relevância. Não tinha. Filósofo de quinta categoria, Milton sabia que sob o ponto de vista da eternidade, nada era perene, tudo se dissolveria no tempo e no espaço, ninguém seria lembrado por absolutamente nada do que fez, as pessoas mais famosas da mídia ou da história um dia, mesmo que levasse cem mil anos, seriam completamente esquecidas, e nada do que foi feito teria valor em si, a não ser como uma infindável corrente de repetição, nascer, viver, morrer para outros nascerem, viverem e morrerem depois.
Certamente essa linha de raciocínio foi uma das precondições causadoras do que estava por vir. Ela o assaltava vez em quando, especialmente quando seguia para o trabalho na lata de conserva superlotada que as pessoas chamavam de trem, indo de Madureira para o Centro do Rio de Janeiro, e ainda mais especialmente quando seus olhos captavam algo estranhamente fugidio, um dos diversos pequenos eventos repetitivos que preenchem as vidas das pessoas, como por exemplo um lampejo de luz na cúpula de vidro de um templo religioso qualquer, que teimava em fulgir justo nos seus olhos, quando passava por ali de trem.
Naquele dia o evento se repetiu justamente quanto Steinberg matutava sobre sua filosofia barata e desanimadora (ao menos ele pensava assim), sobre o fato incontestável de que um amontoado de gente era enlatada diariamente em um ir e vir de horas, somente para que seus filhos e netos fizessem a mesma coisa, eternamente e indignamente.
Quando o raio de luz o cegou, Milton piscou e imediatamente resmungou e praguejou entre os dentes. Sempre que aquele reflexo, que não dava a mínima para existência do sujeito, lhe cegava, ele pensava que no dia seguinte estaria em outro vagão, e que não se esqueceria de pegar sua condução voltado para o lado contrário de onde vinha o reflexo. E algumas vezes cumpria mesmo o intento, mas em algum momento esquecia, ou fatos como pessoas empesteadas de perfumes, ou com rádios altos, ou mesmo um pedinte que teimava em lhe pedir o dinheiro que não tinha e o encarar de forma rancorosa quando recebia um “não”, todos esses pequenos eventos, comuns, o conduziam, como o dançarino conduz a dançarina, reposicionando-o e girando-o, um pouquinho aqui, outro tanto ali, e zap! O reflexo o pegava de novo, bem nos olhos, o relâmpago cegante! Não acontecendo todos os dias, claro, mas acontecendo muitas vezes ao ano. Como era possível? Haveria algum destino? Não, não conseguia conceber um mundo-prisão onde você só existe nele para compor um quadro já pintado, sem chance de ser outra coisa além daquilo, tão pouco, que era. A bem da verdade Steinberg talvez tivesse mais medo daquela possibilidade do que argumentos razoáveis contra a veracidade dela.
Zap! Imprecações, verborragia murmurada, tinha sido pego novamente, novamente e novamente por aquele flash de luz refletida na cúpula de vidro do templo. E por causa do pedinte, de novo, que por sua vez só entrou no mesmo vagão que ele por conta de ele ter ajudado outra pessoa perdida a achar seu caminho ao parar para dar uma informação e perder seu ônibus das seis e quinze que o levaria até a estação de trem, e, provavelmente ele só teve que parar para dar informação por ter feito um caminho mais longo para se desviar daquela mulher que morava na rua ao lado e que se achava a garota mais bonita do mundo e para o ego da qual ele não queria dar alimento a custa dela perceber que ele a achava mesmo muito bonita, enfim… E foi aqui que o cerne da ideia surgiu… Essas coisas se repetiam, não todos os dias, ele sabia, lia sobre essas coisas, sabia da incerteza quântica e etc, que alguns diziam nada ter haver com o mundo macroscópico em que vivemos, e se restringir ao nível atômico, mas ele duvidava muito disso, as incertezas é que mantinham os dias ligeiramente diferentes uns dos outros, pensava ele. Qualquer dia iria perguntar sobre esta sua teoria ao seu amigo físico, Rubens Castilho Lewroy, o velho Binho Cranião, Lewroy Cabeção, gênio do colégio e que trabalhava agora na Urca, naquele laboratório do governo. Iria sim, perguntar a ele. Um dia.
Desceu do trem, na Central do Brasil, aquele monumento ao fato de que se trabalho dignificasse, aquele lugar naturalmente transpiraria dignidade, e não ruína política e social. Milton evitou uns menores provavelmente embebidos em crack e mal intencionados, driblou um camelô vociferante vendendo guarda-chuvas abertamente e celulares roubados mais discretamente, esquivou-se de motoristas que achavam que, nos sinais de trânsito, os pedestres é que deveriam dar passagem aos carros, e, enfim, descobriu que o ônibus que costumava pegar para o último trecho da viagem já havia partido antes do horário, então ele voltou à Central e, soterrando-se em outro transporte público, caiu no metrô que o esmagou novamente e o regurgitou na estação Carioca, de onde Milton emergiu como quem vê pela primeira vez, depois de décadas de trevas, os raios do Sol. Desanimado, pediu um café na cafeteria da esquina. Dona Glória (estava escrito no crachá dela), a atendente, com sua pele castanha e seu sorriso branco, lhe entregou o café preto e fumegante. O homem sorriu gentilmente para a graciosa senhora, em agradecimento, ajeitou a pasta tiracolo no ombro para poder pegar a xícara, olhou para a xícara, e parou de sorrir.
Sobre a superfície de ébano líquido do café, ondas concêntricas se formaram, mas não no centro da xícara, e sim espalhando-se, da área voltada para Steinberg em direção ao lado oposto, ligeiramente mais distante do peito do homem.
Nada demais, a vibração de um ônibus ou dos trens subterrâneos, se não fosse o fato de que duas outras coisas desconcertantes aconteceram neste mesmo instante: primeiro Milton sentiu sua carne vibrar a partir de suas costas até seu peito, como se o que empurrou a superfície do café tivesse passado por dentro dele próprio; e segundo, Steinberg teve a clara certeza de que tudo aquilo que estava vivendo já havia acontecido antes. Não a sensação vaga de um déjà vu, mas a certeza factual de que tudo estava se repetindo, não a mera e massacrante rotina cotidiana, mas de fato, de verdade, ele estava preso, horrivelmente preso, em um mesmo dia que, com algumas variações, era eternamente o mesmo. Não sabia como sabia daquilo, apenas sabia, como sabia seu próprio nome ou o que era uma xícara.
À volta de Steinberg as pessoas pareciam vagamente incomodadas. Sim, muitas pareciam desconcertadas, ele achava, mas rapidamente voltaram aos seus afazeres. Elas haviam tido um déjà vu, mas Milton havia sido o único, por alguma razão incompreensível para ele, que sabia o fato de aquele ser o único dia que existiria para sempre.
Olhou para trás de si. Ponderou. Sacou o celular para avisar que não iria trabalhar, e logo depois era engolido pelo metrô novamente. Era hora de conversar com o Rubens.
A Navalha de Occam
Milton teve que apelar para o Google Maps, mas finalmente estava de frente para o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na Urca.
— Fala Cabeça. — Disse Milton ao celular, da portaria do prédio até modesto, perto de outras instalações dedicadas à ciência mundo afora. Se comparado aos centros de estudos em física de países desenvolvidos, o tamanho do brasileiro era inversamente proporcional à corrupção que assolava o país verde e amarelo de Steinberg. Ainda assim era um prédio, com direito a portaria e guarda dizendo que você só entra se um dos doutores liberar.
— Milton? Cara, que maneiro! Milton Iceberg, o jogador de Tetris mais frio e calculista do Universo! — Respondeu pelo celular o Mestre em Física Aplicada Rubens Castilho Lewroy. — Cara, você e sua intuição para padrões me fizeram seguir carreira científica, sabia? Como está, cara? Deve fazer um ano que não te vejo, e você raramente aparece no Face.
— Estou aqui em frente ao prédio onde você trabalha, Rubens, e preciso muito falar contigo, agora.
— Que voz é essa, rapaz? Ok, ok, vai pra portaria…
— Tô nela, Cabeça.
— ...Então espera que vou ligar te liberando, e o guarda vai te indicar como chegar na minha sala.
— Fala sério, Iceberg! Só você mesmo para tentar me pregar uma peça no meu trabalho! Um dia eterno que varia por causa dos quanta? Isso é, no mínimo, contraditório!
O Doutor Lewroy havia convidado o amigo para um café. Estavam ambos sentados na sala do físico, um em cada ponta de um sofá que ficava em um canto do cômodo, abaixo de uma janela. Lewroy a havia posto lá para poder ler com a luz do dia. Gostava de ler artigos, teses, textos científicos e quadrinhos naquele velho e confortável sofá de quatro lugares. Automaticamente Castilho foi se sentar onde estava acostumado a ficar, no canto longe da porta de entrada do escritório, e seu amigo ansioso ficou na ponta logo ao lado desta porta.
— Rubens. É sério. — Retrucou Steinberg. — Alguma coisa aconteceu… Acontece, toda a manhã, que faz o dia ser o mesmo!
O físico ficou olhando o amigo por um momento, muito sério. Então riu e disse:
— Prova.
— Eu… Não sei como provar.
— Então, cara, isso é coisa da tua cabeça. Fim.
— Não! — Disse Milton erguendo a mão espalmada. — Eu sei, como sei que esta aqui é minha mão. Eu vim falar contigo justamente para você, que sempre foi o mais genial, me dizer o que é isso.
— Alguma falha cognitiva, Iceberg. — e Rubens escancarou seu sorriso mais carioca — O teu cérebro encasquetou em fixar um circuito neuronal que fica dizendo o tempo todo para você que está no mesmo dia. Algo haver com a parte do teu cérebro que lida com o tempo.
— Faz sentido, mas… — E sem se dar conta, automaticamente, Milton ergueu o braço e abriu a porta ao lado. Uma mulher, jovem, estava parada logo em frente à porta, a mão se recolhendo lentamente, era perceptível que ela ia bater quando a porta se abriu, o que a surpreendeu um pouco.
— Oi, Alice. O pendrive com os cálculos está ali, na mesa. — o físico foi falando para a moça. — Milton, esta é a Doutora Alice Moretti.
— Olá, Doutora. Você vem aqui diariamente pegar cálculos ou coisa assim com esse cara, não é?
A moça, séria, olhou de um homem para o outro, e enfim respondeu:
— Sim. Quem é o senhor?
— Desculpe. Sou Milton Steinberg, amigo de infância do Doutor Rubens. — E, voltando-se para o outro homem, Milton foi dizendo: — Eu sabia. Eu sabia que ela estava na porta, pois eu sei que o dia está se repetindo!
— O quê?
— Ele acha que o Universo está preso num loop temporal, Doutora. Olha, Ice… Steinberg, meu amigo, Alice vem sim pegar diariamente resultados de cálculos comigo, e certamente, cara, você a ouviu, mesmo que no limitar da sua audição, chegando na porta que estava bem ao seu lado...
— Você está afirmando — Disse a moça — Que este cara, do nada, veio aqui falar contigo sobre um looping de tempo, desses de filmes da sessão da tarde na TV?
— Eu vim tentar entender o por que de eu saber, com a mais absoluta certeza, que estou vivendo… Nós todos estamos vivendo um mesmo e único dia, num ciclo sem fim.
— Às vezes as coisas se repetem, mas… — Principiou Alice, no entanto seu colega Rubens foi emendando:
— Ele argumenta que as diferenças são por conta do Princípio da Incerteza. — E, mediante um olhar atônito da mulher, o Doutor Castilho deu de ombros.
— E o senhor é formado em quê? — Quis saber a mulher.
— Tetris. — Brincou Milton, com um sorriso desanimado, e já imaginando que foi perda de tempo ir até ali. Alice, por sua vez, finalmente sorriu, e disse:
— Duvido que jogue melhor que eu. Mas tudo bem, se o senhor tem algum dado que prove sua percepção, vamos achá-lo. Se não, vamos encontrar o argumento lógico que te faça compreender que o problema está em seu cérebro, e não no Universo.
E, com certa graça, rara naqueles dias, a moça se sentou no canto do sofá em que Rubens costumava se sentar. Ambos os homens, claro, haviam se levantado quando ela entrou. E ambos os homens se sentaram logo que ela se sentou, Milton no meio e Rubens na outra ponta.
— Alice?
— Doutor Rubens. — Disse Alice, calmamente, em resposta ao colega. — Seu amigo está, obviamente, angustiado com o que está sentindo. Não temos nenhum compromisso urgente agora. A bem da verdade nem os nossos governantes e empregadores entendem a ciência como algo urgente neste país, então porque não ajudar seu amigo? Muitas vezes quando estamos assim, um simples papo já nos tira do fundo do poço.
— Obrigado, Alice. Posso chamar você de Alice? — Quis saber Steinberg, em um tom educado.
— Sem problemas, Milton. Agora vamos lá, se você não tem formação física, preciso te perguntar se entende os conceitos básicos envolvidos. Você entende?
— Gosto de ler um pouco de tudo, com certeza eu não sei tudo que deveria saber. Mas sei o que sei. Só vamos ter este dia, para sempre. — Respondeu Steinberg, quase soltando um suspiro desalentado no final.
— Obrigada por responder, Milton. Eu fiquei preocupada, sinceramente, que você achasse que era algum tipo de arrogância minha perguntar sobre o que sabe e o que deixa de saber, mas é preciso. Você está familiarizado e compreende o conceito de espaço-tempo?
— Sim. Einstein comprovou matematicamente que é mais produtivo pensar que espaço e tempo são a mesma coisa, e até hoje todos os experimentos indicam que ele deve ter razão. É isso?
— Em linhas gerais, sim. Então você diz que o espaço-tempo está curvo?
— Não tenho como afirmar, mas creio que sim, se espaço e tempo são a mesma coisa, então se o tempo se repete, o espaço tem que se curvar também, em círculo, acho.
— Mas, veja, Milton, você afirma que estamos em looping, ou, nas suas palavras, em um dia que se repete eternamente, daí o espaço-tempo tem que ter agora a forma de um círculo, sim, ou em outros termos, a forma de um toro. Feito um pneu, entende? Me acompanha? Ótimo. Então, com esse espaço-tempo em forma de toro, partimos de um ponto qualquer na superfície desse anel volumoso, e chegamos sempre a este mesmo ponto, podemos rodar pela superfície do anel mil vezes, mas sempre paramos no mesmo instante…
— A xícara! Eu sei, toda a manhã a Glória me passa o café preto, por cima do balcão, e é ali que eu atinjo o ponto em que comecei a rodar pelo anel de espaço-tempo.
Alice e Rubens se entreolham, ele com expressão de quem vê algo cair e se quebrar, ela com o rosto impassível. Milton, então, em um resumo breve, mas sem deixar nada importante de fora (exceção feita à tal garota, sua vizinha, que se achava linda, e que de fato era. Desta, Steinberg não falou nada) sobre seu dia eterno, que, hoje ele notou novamente, começava quando ele era transpassado por uma misteriosa força que gerava ondas no seu café preto.
— Interessante, Milton. — Alice falou, sorrindo mais uma vez. — Mas voltando ao ponto, se estamos presos em um anel de espaço-tempo, dia após dia fazendo as mesmas coisas, com pequenas variações por conta de flutuações quânticas, então no que isso difere de um dia normal em nossa atual cultura baseada em capital e trabalho?
Steinberg ficou olhando desconsoladamente para ela, sem saber, assim de súbito, o que responder. A cientista, então, prosseguiu:
— Pode-se dizer que nós sejamos privilegiados, eu e o Doutor Rubens aqui, pois fazemos algo que gostamos, e possuímos o status de pertencermos a uma elite intelectual. Mas em termos gerais, sofremos tanto quanto outros proletariados, que trabalham por um salário, as mesmas mazelas de nossa cultura, nossos dias são infindáveis repetições onde trocamos o tempo de nossas vidas por salários, para que os donos do dinheiro possam usar este tempo para viverem com a liberdade que não temos.
— Onde está o argumento físico?… — Foi perguntando Rubens, ao que Alice o olhou, séria, e ele se calou, para que ela continuasse:
— A percepção, consciente ou não, de que nossas vidas carecem de uma liberdade que, talvez, desse sentido à nossa existência, é uma fonte de tremendo estresse. Sabemos que enquanto uma elite pode usufruir a vida, o belo, e ter tempo para filosofar e de fato usar a mente, sem amarras, para sondar o mundo, nós temos que estar no trabalho das nove até a hora que a chefia achar conveniente. E, depois de uns anos disso, morremos sem deixar vestígio. Isso, se não for disfarçado com botequins, cerveja, futebol, telenovelas, jogatinas, cigarros ou outros escapes mentais, é de enlouquecer qualquer pessoa insensata o suficiente para ficar pensando sobre isso.
A mulher se inclinou ligeiramente para frente e pousou a mão sobre a de Steinberg, como quem o compreende e deseja confortá-lo.
— É isso que está te esmagando, caro Milton, a ponto de sua mente buscar desesperadamente um saída. Sua tese até tem um certo sentido, mas se há flutuação quântica, então, na prática, — ela se inclinou um pouco mais, olhando Milton bem nos olhos. Não chegava a ser uma cena de beijo, mas Steinberg estava pondo em dúvida se a sua vizinha era mesmo a mulher mais atraente que ele conhecia, quando a Doutora Alice completou: — tanto faz.
Ela ficou encarando o homem por mais um momento, tempo o suficiente para ele perceber linhas sutis em torno dos olhos dela, que denotavam ser a mulher mais madura do que ele pensou, à princípio. Então sua vizinha perdeu, em definitivo, o posto. Ainda assim Steinberg não era do tipo que se deixava abater tão fácil por charme e inteligência, e retrucou:
— Isso não quer dizer que eu não esteja certo.
— Navalha de Occam? Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem. Conhece?
— Sim. — Respondeu, em tom conformado, o homem. — Quer dizer, não, não em latim, mas sei o que é. A explicação para os fenômenos será sempre a mais simples.
— Muito bem. E o que é mais simples? Uma força misteriosa que faz o tempo se comportar exatamente como ele se comporta normalmente, ou sua mente, desgastada pelo estresse urbano e social, lhe pregando peças?
Milton Steinberg não sabia se sentia alívio ou não. Mas depois de trocar mais algumas palavras, inclusive de agradecimento, sem falar em e-mails e perfis em redes sociais, o jogador de Tetris apertou as mãos de ambos os doutores, e foi saindo. Enquanto esperava, solitário, um elevador, matutava sobre tudo aquilo.
Será que Occam estava certo sempre? E será que tanto fazia mesmo a forma como o espaço-tempo se comportava? A luz, indicadora de que o elevador acabara de chegar, se acendeu, mas o elevador desceu sozinho. Milton lembrou de seu raio de luz, que refletia em seus olhos quase diariamente, e pensou em medí-lo, se a intensidade fosse exatamente a mesma, não importando a hora da manhã em que ele o cegava, então, metaforicamente, era como se o elevador estivesse mesmo preso entre o térreo e o segundo andar.
Parou em frente a porta do escritório do Lewroy Cabeção e ergueu a mão para bater, quando percebeu que aquele era o momento padrão em que, nas histórias de cinema, ele ouviria algum segredo dos amigos que ainda estavam ali. Apurou os ouvidos e fez cara de divertido muxoxo ao escutar Rubens cochichando um deboche sobre ele: “flutuações quânticas, veja só o nosso campeão de videogames”.
Mas Steinberg fechou a cara quando ouviu a voz de Alice responder, em inglês e no mesmo tom baixo: “are not quanta, waves propagate in four dimensions, and more”.
Um momento depois a porta era aberta por dentro, por Alice, que saía, muito séria, mas Milton já havia ido embora.
Continua na próxima semana, não perca...
Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Agora é sua vez! Influencie no desenrolar desta história, deixe seu comentário aqui embaixo (onde está escrito "Comente, participe"), dizendo se você acha que Milton é louco, ou está mesmo preso em um mesmo dia:
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Leia Agora o Capítulo 1 deste novo livro:
Desta vez foi Milena quem — assim pareceu a Borges — resmungou um palavrão. Algo como um sonoro “que merda”. Eles estavam espremidos um contra o outro, tentando se mexer no escuro, iluminados apenas pelas luzes de seus trajes, sob um monte daquelas anteparas orgânicas que os protegeram da explosão e da subsequente avalanche. Os dois pareciam marionetes cujos cordões se enlaçaram e arrebentaram, fazendo os bonecos caírem em caos, Ramirez sobre Guilherme. — O que foi que você falou, Milena? — Fui lerda! Eu fui a porcaria de uma lerda! Quase matei nós dois. Estou furiosa comigo! Borges bufou, e respondeu: — Eu e você adivinhamos o que o monstrinho alienígena queria dizer, e nos safamos. Para de se tratar como uma super-heroína. Você é só humana, Milena! Mas, por outro lado, tudo bem, continue cuidando de mim, garota! Milena não respondeu. Borges então disse: — E você não vai mesmo me deixar na mão nunca, não é? Nem que eu merecesse me foder... isso é algum trauma, Ramirez? Perdeu alguma menininha numa investigação, enquanto era policial, e agora quer salvar o mundo? — Deixa pra lá, Guilherme. Após um momento, uma fagulha de temor surgiu na voz do bioquímico quando ele perguntou: — Isso foi algum tipo de... Ordem? Silêncio. E com um resmungo de desconforto, o homem mudou, enfim, a direção da conversa: — Olha, mesmo com as plantas-anteparos, se não fossem nossos trajes a explosão tinha rasgado a gente ao meio, ou pelo menos torcido nosso pescoço, feito galinhas num abatedouro! — Cruzes, que imagem horrível. Eu não consigo achar um ponto de apoio, Guilherme. — Ok, deixa eu ver se consigo virar… peraí… ugh… tira a perna... que porra! ... — Ele girava o máximo que conseguia o próprio tronco. Algo cedeu! Abruptamente eles afundaram mais nos escombros, enquanto tentavam segurar um no outro, a beira do pânico.
Para sorte de Guilherme a nova avalanche parou um segundo antes dele soltar um indigno grito quase histérico de terror, que chegou a lhe subir pela garganta, e se esboçar no rosto do sujeito.
— F-foi outra explosão? — Disse ele, ofegante e em evidente exaspero, logo que tudo se aquietou.
— Não. Nossos auriculares externos, assim como nossos alto-falantes externos, continuam ligados, reparou? Nós teríamos escutado o estrondo, mesmo que distorcido pela atmosfera estranha dos ammons.
Por um instante que pareceu alongar-se dali até se perder na escuridão que os cercava, Borges ficou olhando para o rosto de Ramirez, iluminado pelas luzes internas do capacete. Já ela, por sua vez, lançava a vista para trás, por sobre o próprio ombro, olhos arregalados e boca tensa, como quem espera que algo salte da escuridão sobre suas costas. Guilherme engolia em seco quando, de repente, Milena voltou o rosto para baixo, primeiro para dentro do próprio capacete e seus mostradores internos, e depois para o parceiro, e emendou em um quase sussurro:
— Estamos inclinados aproximadamente vinte e cinco graus, na direção dos nossos pés, a colina toda não ruiu, mas tá cedendo, e ainda estamos escorregando. Bem devagar, mas estamos, e o entulho tá pressionando um pouco mais.
Borges apurou os ouvidos, e lá estava o sutil chiado que os captadores externos de seu capacete lhe traziam. Era o som da placa vegetal, contra a qual estava deitado de costas, raspando nos escombros, enquanto a situação se agravava. Na verdade, de toda parte vinha um ranger abafado, mas forte, que ao sujeito parecia o ranger de dentes imensos, rilhando-se uns nos outros, mastigando-o, afligindo-o.
Com o peito oprimido, provavelmente por conta de seu traje estar decidindo quais músculos artificiais flexionar para protegê-lo da nova situação, Guilherme Borges, ainda mais sem fôlego, resmungou, desconexo, enquanto começava a se contorcer:
— Sair… agh! Porra!
— Sim, Guilherme, — respondeu Milena, a voz surpreendentemente mansa, enquanto olhava-o nos olhos e segurava, da melhor forma que podia, o parceiro no lugar — precisamos sair daqui, antes que a gente afunde de vez, mas com cuidado! Me dá suas mãos, estamos praticamente de frente um pro outro, acho que não vai ser difícil...
Ainda assim, mesmo com a posição favorável, não foi fácil, mas acabaram por conseguir, deram-se as mãos, seus dedos se entrelaçaram, e Milena falou novamente:
— Isso, obrigada. Agora ordene que seu traje enrijeça completamente. É possível fazer isso, eu vi nas memórias implantadas, confere aí e faz isso, por favor, eu preciso de uma base firme pra tirar a gente daqui, e vai ter que ser você, que não tá exatamente firme, mas é o melhor que nós temos.
Sem hesitar Borges fez o que sua parceira pediu, e comandou seu traje para que este enrijecesse. Logo a seguir o sujeito sentiu a pressão da força que a parceira fazia sobre ele. Milena estava usando Guilherme como apoio, para forçar os próprios músculos, e as equivalentes fibras artificiais do traje dela, a empurrarem os sedimentos que estavam acima de si, e sobre ambos. Entre os dentes, enquanto ela fazia toda a força que podia, a jovem mulher foi explicando:
— O traje… me diz… que a saída daqui… está… na direção… das minhas costas.
— Sonar. Você tá usando sonar?
— O giroscópio e o sonar... sim, o traje possui essa tecnologia… nnnng!... — O rosto moreno de Milena ganhando um tom avermelhado nas faces. — Na sua... direção, tudo sólido… um pouco mais pra... cima das... minhas costas… nããão!
Luz, tenebrosa e alienígena, mas ainda assim luz, surgiu de repente, entrando por uma fresta nos escombros, que se abria logo atrás de Ramirez. Após injetar esperança na treva em que eles estavam, a réstia de luz externa se foi, e o ranger dos escombros cresceu. De algum lugar vinha um lamento, como o de metal retorcendo, gritando, cada vez mais perto de se partir em pedaços! Mas logo o som se calou e tudo clareou de novo, e mais intensamente.
Milena soltou uma das mãos de Borges e ficou de joelhos. Às costas dela o homem enxergava fragmentos escuros saltando sobre eles, e a toda volta a luz revelava um tipo de barro esfarelado, e dezenas, centenas, milhares talvez, de placas vegetais com pontas esgarçadas, pequenas e muito grandes, tudo se movendo. Era o que sobrou da vegetação e da camada superior da colina, esfregando-se e raspando-se umas sobre as outras, em um desmoronar lento e inexorável.
— Vem Guilherme, rápido! Precisamos ficar em cima desta placa aqui, olha aqui, esta aqui!
Ramirez apontava e puxava o parceiro, que então reagiu e destravou os músculos artificiais de seu traje. Juntos conseguiram sair de onde estavam e montar em um grande pedaço plano de escombro que descia por sobre o restante. Um momento depois eram os dois agentes que deslizaram e, enfim, se firmaram com as solas de suas botas no chão do ninho ammonita.
Assim que saiu do abraço mortal dos escombros e tocou o piso livre de destroços, Borges deus uns pulinhos e ergueu os braços, em uma quase
dancinha da alegria
, contendo uns gritos extasiados. Depois fingiu estar alongando músculos doloridos:
— Ah, esses braceletes tinham que nos manter inteiros! Tô todo dormente! Essas merdas inúteis será que estragaram?
Ao contrário do colega, assim que tocou o chão Ramirez se manteve agachada. Com o rosto se movendo de um lado ao outro, seus olhos transformados em riscas azuis. A agente rastreava a escuridão.
— Altera o modo de visão do seu capacete para infravermelho. — Ela sussurrou para o companheiro, em raro tom autoritário — E desativa os falantes externos.
A treva total de dentro dos escombros fez parecer aos humanos, em um primeiro momento, que o lado de fora era muito mais luminoso, mas na verdade o entorno dos dois humanos era uma mistura daquele tom vermelho escuro soturno e nevoento da atmosfera dos ammons. E a luminosidade estava reduzindo ainda mais. Aos poucos tomava conta do lugar um negrume profundo, embora não impenetrável, com nuances arroxeadas, e que parecia vir escorrendo do longínquo teto da caverna que é o interior da nave ammonita. Essa penumbra fosca e lúgubre parecia mais que a ausência de luz, era como se fosse algo real, feito óleo queimado e pegajoso. Mas não era. Aquilo era a noite viscosa, úmida e glacial do ninho ammon, turva e aparentemente solitária até onde a vista alcançava. No entanto, assim que mudou os receptores visuais de seu capacete para o infravermelho, conforme sua parceira lhe disse que fizesse, Guilherme Borges se surpreendeu!
Havia como que pirilampos incandescentes para todo lado, feito riscos de luz e estrelas cadentes cruzando o ar, e uma miríade de outras formas vagamente fluorescentes, que ora surgiam, ora eram eclipsadas, oscilando por todo lado. Mesmo ele, sujeito pragmático, especialmente quando sua vida estava em risco, não pôde deixar de ver certa beleza naquelas riscas serpenteantes que pareciam ficar fosforescentes em infravermelho. Bem perto deles, diversos filetes verticais de luz esmaecida vibravam, coleantes. Essas listras de fogo-fátuo seguiam padrões, que se tornavam mais perceptíveis conforme se olhava para eles, como se brilhassem, um conjunto aqui, outro acolá, cada grupo parecendo estar aderido em diversas superfícies alongadas.
Normalmente Borges atiraria primeiro, mas será que algo bonito assim tinha que ser realmente perigoso?
Talvez por perceber a expressão dos olhos de Guilherme, ou talvez por adivinhar mesmo seus pensamentos, por causa de alguma dessas intuições que as mulheres têm, Ramirez falou, pelo rádio dos trajes:
— Estamos em perigo, cercados! Está mais escuro, deve ser noite ou estão enchendo a região de algum gás escuro. Mas esses riscos serpenteantes, eu tenho certeza, são ammons. Eu não sei te explicar como eu sei, mas eu sei. Esses caras não são nossos amigos, Guilherme.
Próximos o suficiente para serem vistos com luz normal, e estando Borges agora atento aos mínimos movimentos do inimigo, o agente logo fixou olhar em um daqueles seres em forma de verme, que trazia consigo uma daquelas tabuletas deles, igual àquela que o primeiro ammon começou a usar para comunicar o que queria dizer aos humanos.
— O tablet, Milena. — Disse Borges, indicando com um movimento dos olhos o aparelho que um dos ammons carregava. — Posso inferir a língua deles com aquilo.
Dado o tamanho e os vapores sulfurosos que aqueles valentões que os estavam cercando soltavam agora, a resposta de Milena foi:
— Esquece, Guilherme, a situação não está pra papo...
A prioridade agora era, prosaicamente, ele e Milena saírem dali vivos. Entendido.
— Venha, recue. — Depois de empurrar o parceiro mais para trás de si, Milena estava, Borges percebeu, plantando a postura de base que costumava tomar quando estava prestes a partir pra porrada. Foi quando os terrestres viram os ammon-v, as colossais criaturas que acolhiam os ammons-a, aqueles mais inteligentes e vermiformes, dentro de si. Ammon, sem a letra final, era o nome usado genericamente para descrever um ou ambos os tipos.
Boquiabertos, os humanos recebiam dentro de seus capacetes a informação de que aqueles vultos colossais, cujos corpos quase humanoides e imensos rasgavam agora o nevoeiro, feito montanhas com dezenas de metros de altura brotando e dissipando parte da escuridão. Os ammon-v estavam há cerca de trezentos metros de distância e se aproximando, circulando pela área onde ocorrera a explosão. Alguns dos monstros gigantes pareciam agarrar coisas no chão e enfiá-las nas bocarras.
— Caralhôôô... p-precisamos sair daqui... — Murmurou o homem da Terra, e então, voltando-se para sua companheira, gritou: — Milena!
O primeiro dos ammons-a que cercavam os terrestres atacou, atirando-se sobre os humanos. Mas Milena simplesmente o empurrou para longe com uma pancada dada com seu ombro que atingiu, certeira, o flanco do alienígena agressor. Vendo o companheiro rolar pelo chão, se contorcendo, os outros ammons pareceram, aos olhos de Guilherme Borges, gritar por suas fendas de sintetização de compostos químicos, borbulhando líquidos rubros e alaranjados, e evaporando rolos espessos e cinzentos de fumaça por estes orifícios.
Aquele ammon que possuía o tablet alienígena estava muito mais calmo, e exibiu o aparelho que carregava, erguendo-o no ar, e nele havia a representação gráfica de dois bonecos humanoides que, submissos, deitavam-se no chão, repetidas vezes, e eram cercados pelo que só poderia ser um bando de ammons.
— Nem pensar, bonitão! — Disse Guilherme. — Não me entrego fácil assim não.
Sem aviso, um dos ammons mais próximo cuspiu sobre os agentes um líquido que se espalhou como uma névoa fina e grudenta, e encharcou os terrestres. Imediatamente sensores e monitores dos trajes dos humanos detectaram e informaram que aquilo era um ácido muito potente. Dentro do capacete de ambos os agentes alarmes piscavam, indicando que se tomassem mais algumas rajadas daquela substância, a integridade das armaduras deles poderia ser comprometida.
Milena, como de hábito, reagiu prontamente, e partiu para cima daquele ammon que cuspiu o ácido, chutando-o com destreza e com tamanha força, que uma de suas fendas, que estava fechada, provavelmente manipulando mais ácido, estourou como um cano de vapor rompido. O ammon, engolindo o próprio veneno, desabou ao chão, entrando em convulsões, e com bolhas se formando e estourando em toda a sua grossa pele. Isso abriu uma brecha na fileira dos ammons agressores, que recuaram, aparentando pavor instintivo diante da violência do ataque da humana.
— Vem, Borges! Corre! Corre! Corre!
Guilherme Borges disparou atrás de Milena, mas, em um arroubo de coragem que nem ele mesmo entendeu, voltou atrás alguns passos e arrancou a tabuleta do ammon que estava com ela, com um puxão tão forte (mais por conta dos músculos artificiais do traje, evidentemente, do que pela um tanto franzina compleição física do bioquímico) que quase arrancou as dobras da parte do corpo onde o alienígena segurava o aparelho de comunicação. No entanto, este movimento de captura da tabuleta não lhe saiu de graça, e Borges viu um clarão e sentiu uma pressão terrível, quando algum tipo de granada de efeito moral ammonita explodiu perto dele. Seu traje resistiu, mas, devido à concussão desorientadora, Guilherme não conseguia fixar nada, e bamboleava, terrivelmente tonto. Seus olhos, duas próteses visuais artificiais muito sofisticadas, estavam captando o ambiente sem nenhuma distorção, elas não ficavam ofuscadas em praticamente nenhuma hipótese, mas o cérebro do homem, chacoalhado pela explosão, estava truncando seus sinais nervosos, e o agente terrestre rodava nos eixos, como um foguete sem giroscópio. Alguém agarrou Borges e o puxou com força. Ele, reagindo muito mais instintivamente do que racionalmente, socava o ar repetidas vezes, com a mão livre — a outra ainda agarrava obstinadamente a tabuleta alienígena —, até que a desorientação diminuiu o suficiente para Guilherme perceber que a voz de Milena dizia, dentro do seu capacete:
— Calma. Sou eu! Sou eu, Milena! Vem, corre!
E novamente Borges disparou atrás de sua companheira de missão, que o puxava. Ele chacoalhava a cabeça, enquanto seus pés faziam o possível para acompanhar o ritmo de Ramirez, que, a certa altura, empurrou o homem à frente e voltou atrás. Quando recobrou o controle, Guilherme viu Ramirez mais atrás, uns três metros antes, atracada de novo com os ammons. Os olhos do agente, já naturalmente grandes, se arregalaram. Eram muitos alienígenas contra uma só humana!
— Bracelete! — Bradou Guilherme ao sistema que carregava no pulso, cujo processador, além de potente, era dotado de inteligência, embora não de autoconsciência. No interior de seu capacete um sinal visual indicou que seu bracelete estava ouvindo, e, paralelamente a voz monocórdia do mesmo sistema disse, simplesmente:
— Sim, agente Borges?
— Quais os pontos frágeis da fisiologia ammonita? Fala rápido!
— Desconhecido. Está incapacitado de acessar seus implantes de memória?
— ... Estou, porra. Qual o calcanhar de Aquiles deles? Algum troço que fira ou irrite muito esses merdas?
— Contusões parecem os ferir normalmente, quase como a um humano em seu habitat normal.
— Veneno! Veneno? Pode sintetizar algum catalisador… não, claro que não. Espere. Queimar! Você pode fazer o hidrogênio desta atmosfera incendiar? Aqui tem muito hidrogênio! Pode gerar o oxidante, bracelete?
Ali perto Ramirez desviou de uma nova rajada de ácido, agarrou um ammon e o arremessou sobre os outros, bem a tempo de se agachar, curvada sobre si mesma, feito uma concha se fechando, e ser atingida por outra bomba de concussão, que Borges viu sendo cuspida por um dos outros ammons.
— Liberando oxigênio do seu tanque, e depois provocando a explosão, podemos queimar parte do hidrogênio pressurizado desta atmosfera.
Borges desviou o olhar do próprio antebraço, onde estava o bracelete, até a cena onde sua parceira se ergueu e voltou a brigar ferozmente com os ammons, mas era visível que, pouco a pouco, Milena perdia terreno, e logo seria dominada, pois eles eram vários ammons atacando-a, e a cada instante pareciam chegar mais e mais deles. E, pior, quando pegassem Ramirez, viriam atrás de Guilherme!
— Ah, sem chance! — Disse ele em voz alta, respondendo à sua própria conclusão. E, rapidamente, para o próprio pulso, questionou: — Bracelete, nossos trajes podem aguentar a combustão?
Após uma fração de segundo, que a VRP do bracelete levou fazendo intrincados cálculos cujas equações zuniram em uma janela de dados projetada dentro do capacete do agente, e durante o qual, certamente, decisões táticas foram consideradas, sobre se o percentual de risco da ação solicitada era válido para se completar a atual missão dos agentes, veio a resposta:
— Uma liberação controlada de cerca de três vírgula setenta e quatro por cento do oxigênio concentrado no gel do tanque do seu traje deve ocasionar uma detonação controlada, suportável por suas blindagens.
— Os ammons se ferram? O oxigênio que me resta vai me manter vivo por quanto tempo?
A inteligência do bracelete de Borges entendeu facilmente quais eram as duas perguntas, pois respondeu de pronto:
— Os ammons próximos devem sofrer ferimentos consideráveis. O oxigênio restante ainda deve permitir a sobrevivência do usuário por pouco menos de uma semana da Terra, se a média intensa de consumo continuar a mesma.
Era uma margem muito boa. Guilherme já corria em direção à Milena, enquanto ordenava ao seu bracelete:
— Comece a liberar o oxigênio! Provoque a ignição quando eu gritar… sei lá… queimar! Não, caralho, queimar não. Porra, o que?... Já sei, foda-se, ouviu bracelete? Assim que eu gritar foda-se!
— Iniciando liberação do oxigênio. Palavra-chave ignitora: foda-se. — foi a resposta, sem nenhuma entonação emocional, do bracelete de Borges.
E assim Guilherme passou correndo entre Milena e seus agressores, vendo apenas os olhos cor de anil arregalados da mulher, que não deve ter entendido o que Borges fazia ali, correndo feito um garoto desajeitado, gritando coisas desconexas, bem no meio da pancadaria. Ele deu a volta, fintando o melhor que pôde os ammons, feito um jogador de futebol americano mais sortudo do que realmente competente, livrando-se de dois, três, e sendo derrubado pelo quarto dos alienígenas, que se ergueu sobre o terrestre como um urso enorme prestes a esmagar o humano. Mas, para piorar, este urso infernal respingava ácido.
— Guilherme! — Gritou Milena, apavorada, pois estava longe demais para acudi-lo.
— Fo-da-seeee! — Evidentemente que não era preciso gritar, muito menos enfatizar a palavra silabicamente, mas ele gritou assim mesmo, deste jeito, e tão alto que sua cabeça, seus dentes, e até mesmo os seus olhos pareceram vibrar.
Em resposta, quase imediatamente, do ponto onde o bracelete de Borges emergia do punho do seu traje, um diminuto pedaço deste mesmo bracelete se projetou, alongando-se, e emitiu uma pequenina fagulha. Uma serpente de fogo surgiu em um instante, e tudo explodiu em luz e chamas, parecendo a quem estava ali próximo que o mundo inteiro havia sido convertido em labaredas radiantes!
Mas como o oxidante essencial daquela ignição era o oxigênio, e ele se esgotou rapidamente, a combustão também foi razoavelmente curta, embora sua temperatura tenha sido bastante alta.
Logo depois da explosão, os terrestres se viram no meio de cinco ou seis ammons, que estavam com grandes trechos de suas peles enegrecidos e quebradiços, e que se debatiam no chão, ferindo-se ainda mais. O restante dos atacantes alienígenas corria para longe. Milena estava de pé e girando lentamente, enquanto murmurava, com olhos tristonhos e a voz embargada:
— Oh, estão feridos… estão agonizando… não sei o que fazer… estão sofrendo, coitados… o que eu faço?... Estão sofrendo... agonizando...
— Oxigênio, eu explodi tudo! Corre, Milena, porra! Pra merda esses bichos!
E desta vez foi ela quem obedeceu, tomando ligeiro susto a princípio, ao ser subitamente puxada pelo parceiro, mas agindo logo a seguir, sem titubear, e correndo atrás de Borges.
Juntos, os humanos dispararam nevoeiro adentro, enxergando apenas através dos sonares de seus trajes. Eles nunca correram de fato assim, quase às cegas, apenas com os capacetes desenhando o melhor possível — visto a alta velocidade com que o aparelho tinha que produzir tais imagens — os obstáculos, encobertos pelo espesso nevoeiro da atmosfera ammonita, no desconhecido e potencialmente fatal caminho à frente. Mais uma vez, eram as memórias de treinamento implantadas em seus cérebros que lhes vinham em socorro. Eles se recordavam de simular em treinamento aquela situação extrema. Rememoravam tais lembranças quando ativamente solicitadas, ou quando a adrenalina inundava seus corpos, o que era exatamente o caso naquele instante.
Correram com o sangue trovejando nas veias, sem olhar para trás, olhos arregalados, mas sem conseguir ver, de fato, por onde corriam. Uma interminável disparada para o que poderia ser a salvação ou para o abraço trevoso de seus inimigos, ou de outros terrores ainda desconhecidos e ainda piores naquele mundo sombrio. E como que para sublinhar essa agonia, sem o menor aviso, dentro de toda aquela escuridão, Milena e Borges foram engolidos por um tipo de mata densa. Grande quantidade de chicotes, enraizados no chão e estendendo suas longas e delgadas hastes cinzento-arroxeadas para o alto, começou a chibatar os terrestres por todos os lados, quase os fazendo tropeçar.
Mas, passado o susto inicial, quando pararam de correr e chegaram mesmo a retroceder alguns passos, os humanos começaram a avaliar o lugar que os cercava agora. As folhas do mato eram longas, quase lhes chegando à altura das cabeças, e eram grossas, mas também relativamente largas, e bordejadas de cílios que se agitavam como pequeninas larvas. Breves varreduras com os sensores de seus trajes, e lançamentos fortuitos de seixos e gravetos em torno de si, mais para o meio daquilo que parecia ser grama alta, foi o máximo de testes que conseguiram fazer. De resto, concordaram em uma breve conversa, era torcer para que o matagal alienígena fosse seguro, não havia como procurar outro esconderijo.
Entraram juntos, e ao se abrigarem mais lá para dentro da exótica vegetação, agachados sob a cobertura que ela lhes proporcionava, descobriram as estruturas. Eram montículos perfeitamente organizados de coisas. A maioria fragmentos sortidos da sociedade humana, tais como bolas de bilhar, dados de jogo, tablets de pulso, bijuterias, talheres quebrados, tubos de cremes vazios, e etc.
— Que aparelho é este? — Fez Milena, apontando, sem tocar, para um pedaço retangular de algo composto por plástico, metal, e um monte de corrosão.
— Um tipo de tablet do passado. Ah, tá sujo, arranhado, cheio de bagulho em cima, mas você já deve ter visto em filmes bem antigos, não? — Respondeu Borges, entre os dentes. — Creio que se chamava smartphone, mas o negócio era tão esperto quanto uma ameba amestrada, na verdade.
— É mesmo, Guilherme, verdade, tinha esquecido, um smartphone, olha só... ainda mal sonhavam com o amplo uso da optotrônica e memluztores nesta época. Olha lá, mais montes de coisas! Tem desses... totens em todos os lugares, espalhados pelo mato.
— Totens. Bom nome. Ok. Vamos dar uma olhada naquele lá.
Acabaram encontrando outros totens, em menor número se comparados com os montículos de objetos terrestres, que exibiam apetrechos ininteligíveis. A maioria parecendo já muito gasta pelo tempo também. Os terrestres foram investigar um desses amontoados peculiares.
— Aposto, Milena, que isso vem de outras culturas, sem ser a nossa. O que será isso ali, ó? Tá vendo? Parece uma série de recipientes de vidro que brotaram uns dentro dos outros. Vê as enervações? Será uma garrafa de uísque de outro mundo? Ou algum tipo de flor inflada e cristalizada? Um crânio? Um tipo de casco ou unha bulbosa? Fascinante, né não? Bom a gente não tocar em porra nenhuma dessas merdas...
Milena torceu o nariz, mas aquiesceu, silenciosa e parecendo um tanto assombrada, olhando em volta. Ambos resolveram explorar um pouco mais além, e confirmaram que os totens ammonitas, de fato, se espalhavam por todo o matagal alienígena, montículos de histórias humanas ou não, imersos entre um mar dessa grama estranha e alta. Guilherme Borges continuou:
— Reparou uma certa regularidade nesses totens? Isso aqui deve ser algum tipo de arquivo de referência, acho, para pequenos objetos talvez (imagina o arquivo pra coisas maiores!). Vai ver que esse matagal é alguma base de dados, ou mostruário.
— Acha que isso pode nos comprometer? — Quis saber Ramirez, atenta agora. — O próprio matagal pode nos sentir, ou alguma coisa assim, e nos expor aos ammons?
— Até agora tudo bem. Vamos torcer para que isso aqui seja um tipo de arquivo morto.
Voltavam para próximo do ponto onde eles entraram no matagal, quando Milena os fez parar, dizendo:
— Não temos localização por satélite aqui, só temos um o traje do outro como referência, então até podemos nos perder, mas eu posso apostar que aquele monte ali é onde encontramos o smartphone... E esse totem, que estava sozinho, não tá mais...
Guilherme, que vinha logo atrás da mulher, e começava a se entreter com o tablet que tirou do ammon, levantou a vista quando a parceira o parou, e estremeceu com o que viu, recuando um passo, arregalando os olhos, e dizendo:
— Porra! Não, esse troço não tava aí!
Ao lado do monte de coisas humanas, havia um obelisco de ébano, com uns dois ou três metros de altura, Borges nem atinou usar os sensores de seu traje para lhe dar medida exata. Milena, no entanto, ergueu o pulso onde podia manipular diretamente o teclado projetado de seu bracelete de dados, e iniciou uma sondagem. Após um momento, balançou a cabeça, e murmurou:
— Os feixes dos sensores encontram esse negócio, mas parece que resvalam nele, não dão resultado positivo nem para a distância que ele está de nós.
— Mas... ele tá bem ali, na nossa frente.
— Eu sei, mas nossos sensores não concordam com nossos olhos.
Aproximaram-se cautelosamente do obelisco, e de fato conseguiram chegar rapidamente perto de algo que seus sensores não conseguiam definir bem se estava dois metros à frente, ou adiante alguns quilômetros.
Os agentes rodearam o objeto, e em vários momentos relataram, um ao outro, sensações de vertigem ao olharem para as superfícies laterais do obelisco a partir das suas arestas.
— Eu vejo que a superfície é relativamente curta, uns cinquenta centímetros, talvez. — Murmurava Guilherme. — Mas meu cérebro insiste em me fazer sentir como se eu estivesse olhando a beira de um abismo fundo pra caralho... que merda...
Milena fez menção de tocar uma das faces do obelisco, mas Borges a impediu, ao que ela foi dizendo:
— Calma, eu não pretendia tocar. Queria apenas sentir se há algum tipo de aura, ou força em torno dele, que deixe a gente enjoado assim.
— Basta não olhar pelos cantos dele. Tem que encarar esse troço de frente, e pronto. Pelo menos nossos sensores indicam que não há radiação letal aqui.
Depois de atirar pedrinhas no obelisco, tocá-lo com hastes da grama, e aspergir um pouco do granulado solo daquele lugar nele, finalmente os dois tocaram, com suas mãos enluvadas, naquela superfície absolutamente negra, e deslizaram os dedos sobre ela.
— É como tocar... vidro... vidro ligeiramente amolecido... — disse Borges, buscando, uma a uma, as palavras.
— Pra mim, apesar de estar usando luvas agora, me lembra a sensação de tocar a pele de uma orca, quando ela nada com intensidade, com fúria.
Guilherme Borges ficou olhando para a parceira, a mão ainda tocando o objeto alienígena, e depois de um momento, ele sorriu, e disse:
— Tá de sacanagem, Milena?
— Como?
— Você já tocou numa baleia assassina furiosa?
A mulher sorriu, torceu o nariz por um segundo, seus olhos azuis luzindo em contraste com sua pele de bronze. Enfim retrucou, simplesmente:
— Islândia. E a raiva não era por minha causa.
Ficaram ali, observando o objeto por mais algum tempo, mas, apesar dos totens estranhos e perturbadores, e do recém-descoberto obelisco enigmático, nada de verdadeiramente ruim aconteceu aos humanos, enquanto se escondiam naquele matagal, e eles puderam, enfim, encontrar uma pequena e bem camuflada clareira, e recuperar o fôlego ali.
Minutos depois de se refugiarem nesta clareira, Guilherme, que havia se sentado e recomeçado a mexer na tabuleta de dados ammonita, percebeu que Milena estava cabisbaixa. Não havia como ficar de pé sem aparecer acima do matagal, então Ramirez estava de cócoras. Seus olhos estavam fitos no chão, como se buscasse ouvir algo distante, ou como se estivesse perdida em reminiscências.
Apesar de soltar um resmungo contrafeito, Borges se levantou e, também se movendo abaixado, foi até Milena, pegou a parceira gentilmente pelo pulso, e disse:
— Obrigado por nos manter vivos mais uma vez, Ramirez.
Ela ergueu seu rosto de traços delicados, com seus grandes olhos brilhando, úmidos e respondeu:
— Você nos salvou, usando seu oxigênio para explodir eles. Eu que tenho que te agradecer, obrigada. E... obrigada por tentar me animar, mas… eu queria ser melhor em curar do que em ferir, Guilherme. Queria muito isso.
Ele ficou olhando para ela longamente. Milena, ainda transpirando tristeza, se afastou um pouco e se ergueu, furtiva, espiando por sobre o mato. E entrou nele, dizendo:
— Vou até a borda do matagal, volto já.
E, depois de um tempo, Borges disse, para si mesmo:
— Meu oxigênio... — E o agente terrestre sentiu, de repente, um medo profundo e inexplicável. Por um instante fugaz Guilherme soube que aquilo que fez, queimando seu oxigênio, iria pôr ideias na cabeça de sua parceira, que era propensa a heroísmos. Ideias muito perigosas. Mas como vieram, aqueles pensamentos subitamente se foram. Sobrando apenas uma vaga angústia.
Continua...
VRP: (Virtual Reality People): Toda e qualquer Inteligência Artificial (I.A.), pois todas são baseadas em um mesmo sistema algorítmico, conhecido como Vínculo Matriz-Conceito de Maia (Maia - 2010), ou Algoritmo de Maia. Uma VRP é uma "pessoa sintética", que pode ter as mesmas capacidades intelectuais de um humano, ou ser muito superior, intelectualmente, a este. Uma VRP ainda pode existir somente como um software dentro da VRnet, ou ter toda uma estrutura de hardware, que pode ser um poderoso computador quântico ou um optotrônico EpChip (Encefaloprocessadores Matriciais). Por força de Lei Constitucional Mundial, toda VRP deve ter seus algoritmos (o essencial Algoritmo de Maia e todos os paralelos) dependentes do Algoritmo Ozimov, que é uma técnica que consiste em um algoritmo de aprendizagem de máquina, cuja função abstracional está focada na identificação de contexto de situações decisórias da Inteligência Artificial na qual está implantado, sopesando tais decisões de acordo com três critérios a saber: quanto bem causa, quanto mal causa, e quanta justiça gera. Como os instintos mais básicos e inescapáveis do ser humano, numa VRP o Algoritmo Ozimov está na raiz de cada decisão e recorre a um banco de dados de situações éticas básico, mas amplo, que, no entanto, vai crescendo de acordo com a vivência da máquina. Ou seja, a máquina não toma nenhuma atitude sem que esta passe primeiro pelo Algoritmo Ozimov (isso está garantido tanto por estruturas de software quando de hardware dedicado ou não, e está previsto em cláusula da Constituição Mundial como de uso obrigatório, sendo crime gravíssimo a fabricação de robôs sem essa salvaguarda. Vale notar que, não raro, a Agência Código 7 usa VRPs de vários tipos, de robôs a softwares, sem ou com uma versão o Algoritmo Ozimov modificada, que permite, por exemplo, que seus robôs de segurança portem armas mortais e façam uso delas), e quanto mais atitudes éticas a máquina sopesa e compreende, mais refinado fica o algoritmo. O nome do algoritmo é a pronúncia do sobrenome em russo do bioquímico e escritor de ficção científica Isaac Asimov, criador de contos e romances protagonizados por robôs que seguiam fundamentalmente as Leis da Robótica [http://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_da_Robótica], de sua autoria e que serviram de inspiração para toda uma vertente da engenharia robótica voltada a criação de Inteligências Artificiais dotadas de comportamento ético, culminando no pequeno e rudimentar robô chamado de Nao, da Aldebaran Robotics (http://www.aldebaran-robotics.com/), no ano de 2010, que foi a primeira máquina dotada de princípios éticos [Revista Scientific American Brasil, Ano 8, Número 102, Novembro de 2010], e, em meados do século seguinte, na criação e aprimoramento do Algoritmo Ozimov e de sua técnica de aplicação.
Optotrônica: no universo C7i os aparelhos como computadores e sistemas em geral não são mais baseados em eletrônica, ou seja, em semicondutores elétricos, mas em sua integralidade a tecnologia de informação de C7i é composta por equipamentos semicondutores de luz. Assim como a eletrônica de um aparelho são seus componentes semicondutores de elétrons, a optotrônica de um aparelho em C7i são seus componentes semicondutores de luz. Já a optoeletrônica, como a conhecemos hoje e que é ancestral da optotrônica de C7i, é o estudo e aplicação de aparelhos eletrônicos que fornecem, detectam e controlam luz, normalmente considerada um subcampo da fotônica. Nesse contexto, luz frequentemente inclui formas invisíveis de radiação como raios gama, raios-X, ultravioleta e infravermelho, em adição à luz visível. Aparelhos optoeletrônicos são transdutores “elétrico para ótico” ou “ótico para elétrico”, ou instrumentos que usam tais aparelhos em sua operação. Eletro-óptica é frequentemente usada incorretamente como sinônimo, mas é, de fato, um braço mais abrangente da física que lida com todas interações entre luz e campos elétricos, quer eles formem ou não parte de um aparelho eletrônico. A optoeletrônica é baseada em efeitos quânticos da luz em materiais semicondutores, às vezes na presença de campos elétricos.
Memluztores: ou memlightstores, em C7i são componentes optotrônicos equivalentes aos atuais componentes eletrônicos chamados memristores. Um memristor seria o quarto componente eletrônico fundamental - ao lado do resistor, do capacitor e do indutor - e teria propriedades que não poderiam ser duplicadas por nenhuma combinação desses três outros componentes. A propriedade mais importante desse componente é a "memresistência", o que na prática significa que o memristor é uma memória resistiva, que não perde os dados quando a energia é desligada. Um memluztor tem capacidade semelhante, ou seja, permitem que unidades de processamento (um computador quântico, um EpChip, etc.) ou de armazenamento (botdrives, holobubbles, etc.) sejam desligados de sua fonte de energia sem perder seus conteúdos de memória. O processo envolve nanofotônica e deriva da cristalização de fótons.
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Em poucas palavras a Srta. Kelly disse MUITO sobre a minha filha de papel Mônica (conheça em www.wagnerrms.com/monica) , além de cercar a Srta. Deveraux de outros personagens e de obras magníficas, confere aqui no vídeo! MUITO Obrigado Srta. Kelly, a senhorita arrasou, como sempre! ^_^
Confere aqui, novas opiniões sobre Mônica! As primeiras impressões da Srta Kelly, carismática resenhista do Aventuras na Leitura, sobre meu livro Mônica. Críticas são super bem-vindas, mas, cá entre nós, elogios também são! ;-)
Meus profundos agradecimentos àqueles que me deram a honra de me ler até aqui! Vamos em frente, neste texto um tanto crítico, outro tanto irônico, onde Milton, uma pessoa tão comum e tão desalentada pela realidade crua quanto muitos de nós, mergulha em um mundo de paranóia, ciência, e conspirações, tentando encontrar a si mesmo dentro de um prisão que ele crê eterna!
Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Qual a Probabilidade?
Milton comprou, à prestação, um fotômetro. O mais preciso que o Google conseguiu lhe indicar. Ajustou o aparelho, e começou, dia após dia… Ou melhor, nas repetições daquele dia, ele começou a tentar pegar o raio de luz que lhe cegava. Mas o Universo, como da hábito, não pretendia entregar seus segredos sem lutar, e as mesmas coincidências que o levavam a ser cegado pelo reflexo na cúpula de vidro agora o tiravam, diligentemente, do alvo.
— Você mora perto da minha casa, não? — Disse-lhe sua vizinha, subindo ao seu lado a escada rolante para a plataforma do trem, em Madureira, quando ele ia para o trabalho.
Era inacreditável, mas o fato de ele saber que o dia se repetia deveria estar causando flutuações mais intensas na realidade, pois lá estava, bem ao lado dele, a mulher que tanto o atraia, e que jamais havia percebido a existência de Milton, e agora não só estava a menos de um metro dele, mas também tomou a iniciativa de puxar assunto. Antes mesmo que ele pudesse responder, ela riu, sem jeito, e foi dizendo:
— Desculpe, não me entenda mal. Quero dizer… — Riu de novo, ainda mais sem graça. — Mas somos vizinhos, não somos?
— Você é muito lind… — Engolindo de volta o que tentou dizer em um ato falho, Milton engasgou ligeira mas visivelmente, tentando também consertar o dito: — Minha vizinha, sim, você é minha vizinha.
— Eu sabia! — Ela sorria. — Meu ônibus enguiçou, tive que pegar o trem. Não costumo fazer isso, mas como eu sei que você é um cara gentil, eu, meio louca, sei lá, perguntei antes de perceber que isso iria ficar estranho.
Milton comprou, à prestação, um fotômetro. O mais preciso que o Google conseguiu lhe indicar. Ajustou o aparelho, e começou, dia após dia… Ou melhor, nas repetições daquele dia, ele começou a tentar pegar o raio de luz que lhe cegava. Mas o Universo, como da hábito, não pretendia entregar seus segredos sem lutar, e as mesmas coincidências que o levavam a ser cegado pelo reflexo na cúpula de vidro agora o tiravam, diligentemente, do alvo.
— Você mora perto da minha casa, não? — Disse-lhe sua vizinha, subindo ao seu lado a escada rolante para a plataforma do trem, em Madureira, quando ele ia para o trabalho.
Era inacreditável, mas o fato de ele saber que o dia se repetia deveria estar causando flutuações mais intensas na realidade, pois lá estava, bem ao lado dele, a mulher que tanto o atraia, e que jamais havia percebido a existência de Milton, e agora não só estava a menos de um metro dele, mas também tomou a iniciativa de puxar assunto. Antes mesmo que ele pudesse responder, ela riu, sem jeito, e foi dizendo:
— Desculpe, não me entenda mal. Quero dizer… — Riu de novo, ainda mais sem graça. — Mas somos vizinhos, não somos?
— Você é muito lind… — Engolindo de volta o que tentou dizer em um ato falho, Milton engasgou ligeira mas visivelmente, tentando também consertar o dito: — Minha vizinha, sim, você é minha vizinha.
— Eu sabia! — Ela sorria. — Meu ônibus enguiçou, tive que pegar o trem. Não costumo fazer isso, mas como eu sei que você é um cara gentil, eu, meio louca, sei lá, perguntei antes de perceber que isso iria ficar estranho.
— Não ficou. Não, não ficou. Somos vizinhos, devemos nos conhecer. — A pasta tiracolo dele escorregou de seu ombro, e Milton a ajeitou. — Tudo anda tão louco, que é bom saber que pessoas conhecidas estão por perto… Ei, desculpe perguntar, mas como sabe que eu sou gentil?
— As pessoas falam. — Ela estava estonteante, arrumada para o trabalho, elegantemente e sutilmente sensual. Devia ser advogada, ou algo assim, ele pensava.
— Pessoas?
E dali em diante ficava fácil deduzir o por que fez ele não ter conseguido medir o reflexo luminoso, de novo. Na verdade ele nem lembrou do flash até chegar ao Centro do Rio. Sua vizinha, que se chamava Rheny Alencar Roussel, explicou a ele sobre como as senhoras da vizinhança, que gostavam dela pois todos os sábados Rheny jogava cartas com elas, haviam colocado Milton na lista de boas e más pessoas das redondezas, enquanto fofocavam inofensivamente entre si. Ele era uma das pessoas boas. Uma certa senhora do grupo, que Steinberg sempre achou que não gostava muito dele, o viu respondendo aos acenos de crianças dentro um ônibus que agitavam as mãozinhas nas janelas (quando acenam para você, é educado, ele achava, acenar de volta, especialmente quando se percebe a alegria inocente dos pequenos) em uma rua próxima, deixando-as risonhas e felizes.
Milton jamais imaginaria que ele pudesse estar em uma lista dessas, no lado das boas pessoas, e se sentiu feliz com aquilo. Tão feliz que, ao se despedir de Roussel, sem, no entanto, reunir coragem para pedir a ela um telefone ou algo assim, subitamente se deu conta de que havia esquecido de medir o reflexo luminoso!
Na tentativa seguinte, exatamente quando Milton levantava o fotômetro, um sujeito lhe disse que estava perdido, que precisava ir ao Centro mas que não sabia se estava indo na direção certa, pois era de fora do Rio, e estava ali para buscar uma irmã, que ele não via há quase vinte anos, e etc e tal, e pronto, lá se foi sua chance naquela manhã de medir o foco luminoso.
No dia posterior Steinberg estava tentando, dentro do vagão em movimento, acionar o aparelho de medição sem tirá-lo da bolsa, pois nos dias anteriores achou que os seguranças da linha férrea o estavam olhando torto, talvez estranhando que ele andasse apontando aquele aparelho para lá e para cá, enquanto o calibrava. Milton, portanto, passou a tirar o fotômetro só quando estava chegando perto do ponto onde a luz o atingia. Mas enquanto tentava acionar o aparelho que, por alguma razão misteriosa não queria ligar, ele foi abordado pelo pedinte ranzinza, que o cutucou com uma caneca, e disse:
— Qualquer dez centavos serve.
— Hein? Ah, sim. Eu não tenho.
— Você nunca tem.
Milton ficou olhando para o pedinte, um senhor de certa idade, sem saber o que dizer além de um xingamento, que, em verdade, ele preferia não dizer. Steinberg não era muito velho, mas era do tempo em que não se xingava tão levianamente quanto hoje em dia. Então, subitamente, o homem preso em um único dia se viu perguntando ao mais velho:
— Para quê o senhor quer dinheiro?
— Estudar.
— C-como? O que você disse?
— Isso que você ouviu, rapaz. Na verdade eu sempre explico, mas você é um daqueles muitos que não escutam, que não querem escutar, ou estendem a mão e deixam cair seus trocados aqui na caneca, — a peça de plástico se agitou e tilintou na mão dele — ou fingem que não me viram. Uns poucos me dizem um mais cortês não. Você sempre me diz não, mas pelo menos fala comigo.
— Me… Desculpe.
O velho deu de ombros e prosseguiu, animado em conversar:
— Lembra do cara que morava na rua e que estudou e passou para o concurso do Banco do Brasil?
— Ouvi falar…
— Pois é. Eu já fui professor, agora moro na rua, junto com outras pessoas em um buraco na estação de Madureira. Mas acho que posso sair dessa, seguindo o exemplo daquele homem, estudando.
— Professor? — Milton ficou com a impressão que conhecia o velho pedinte, e essa impressão deve ter transparecido em seu rosto, pois o outro foi dizendo:
— Sim, eu fui seu professor no ginásio. Eu nunca esqueço um rosto, eu acho que você era o… Rosemberg?
— Steinberg. Português? O senhor ensinava português?
— Estudos sociais.
— Como? Quero dizer, como isso aconteceu, professor?
— A profissão já não tem muito prestígio no país no futuro, sabe como é. O país das desgastadas chuteiras tem tudo para ser o país dos diplomas, mas não é. — Seu sorriso não desapareceu, mas seus olhos expressavam mágoa, quando completou: — E, cá entre nós, convenhamos, droga só pode chegar tão fácil na mão da gente com a conivência, ou coisa pior, dos governantes, certo?
Milton, agora, foi quem deu de ombros. Aquilo era uma coisa que todo mundo sabia, política e marginalidade no Brasil eram quase sempre a mesma coisa. Steinberg fez uma cara triste. Achava que lembrava, vagamente, do professor, e ele era um cara que ensinava legal, sempre risonho, parecia gostar muito de lecionar.
Steinberg se atrasou para o trabalho naquele dia. Ele e seu antigo mestre comeram juntos na mesma cafeteria que Milton sempre frequentava, e o professor viu a xícara de café vibrar e o líquido preto dentro dela se preencher de ondas concêntricas!
— O senhor viu isso? Viu só?
Ele tentou explicar ao idoso professor que aquilo acontecia diariamente, e não teve certeza se o cara entendeu que algo inusitado estava acontecendo. Depois disso Milton passou em uma livraria com seu antigo mestre, que sonhava em voltar a estudar, e quase estourou o que restava do limite do seu cartão de crédito, comprando apostilas e livros para o sujeito, cujo rosto se iluminou, ele tinha uma chance! Em uma LAN house, Steinberg fez um perfil no Facebook para o sem teto, anotou os dados em um dos livros que haviam comprado, e fez o cara prometer que, quando superasse aquela época difícil, após passar no concurso, iria fazer contato com ele. Milton sabia que isso não aconteceria, pois nunca mais haveria amanhã, mas, caramba, justamente por isso, dane-se! Deu algum dinheiro para o sujeito, e se despediu dele. O velho professor ficou tão feliz que Milton só lembrou do flash luminoso no dia seguinte.
Mais um dia e Steinberg estava, de novo, no vagão, e conseguiu, com algum esforço, chegar à exata posição onde, ele já estava cansado de saber, o raio de luz o atingia. Mas assim que chegou lá, tossiu. Um sujeito de terno e gravata, com aparência de executivo, parecia ter passado a noite anterior dentro de um grande tonel cheio de perfume! Se ao invés de cheiro o camarada estivesse exalando fogo, o trem inteiro teria explodido e estaria ardendo em chamas! Era quase insuportável, mas, desta vez, Milton estava decidido a não deixar nada, de jeito nenhum, impedir que ele fizesse a medição da luz. Fincou pé em sua posição e armou o fotômetro assim que o trem parou na estação logo antes de onde ele sabia que o raio luminoso costumava aparecer. Em cerca de dois minutos o flash espocaria da cúpula de vidro do templo religioso, mas não atingiria seus olhos, e sim o sensor do fotômetro.
Houve um certo tumulto, na estação em que o trem havia parado, um burburinho, algumas pessoas correndo, e Steinberg ouviu, em algum lugar, a palavra “assalto”, mas não houve uma explosão de gente em fuga, o que pareceu indicar que tudo havia passado. As portas da composição se fecharam, ele apertou o sensor luminoso na mão direita, enquanto a esquerda segurava firmemente a barra de metal acima dele, que servia para que as pessoas entulhadas ali dentro se mantivessem de pé, para caberem mais dos ditos dignos trabalhadores por metro cúbico.
Steinberg olhou furtivamente em volta de si, e não viu nenhuma pessoa conhecida, ergueu o aparelho, pondo ele em frente ao rosto e… Seu telefone tocou. Ele ignorou. Alguém dentro do vagão gritou alguma coisa. Ele ignorou.
A qualquer instante a luz iria espocar!
Mas antes disso, alguém esbarrou nele, se levantando de um dos assentos à frente, abarrotados de pessoas, como quem quer fugir, sair de perto dele, e Milton percebeu, de canto de olho e depois olhando diretamente, que dois seguranças, com bonés e coletes de cores berrantes, vinham em sua direção, olhando-o com raiva!
— Larga esse troço! — Um deles gritou, enquanto o outro levantava um cassetete.
Milton, que sabia o quão bem treinados eram esses tipos de profissionais no seu país, desatou a correr, claro. Ou melhor, tentou correr no engavetamento de gente que era o vagão balouçante de trem naquele momento da manhã.
Um agressivo estalo elétrico o fez perceber que alguém, certamente um dos seguranças, empunhara uma arma de choque, e instintivamente Steinberg começou a empurrar as pessoas, como o afogado que empurra a água tentando respirar! Em algum lugar seu celular tocava sem parar, ele nem se dava conta, enquanto lutava para escapar. Ele chegou ao fim do vagão e atravessou o acesso que havia entre as composições acotovelando quem estivesse pela frente. Milton chegou a levar um soco desengonçado de alguém, mas estava com a adrenalina tão alta, que mal sentiu o fraco golpe, enquanto ouvia os gritos cada vez mais selvagens dos dois seguranças, que praguejavam e xingavam Steinberg, as pessoas que atrapalhavam a perseguição, maldizendo tudo, até o mundo que era uma merda! Corriam aos tropeções, os três, enquanto as pessoas faziam o possível para sair do caminho, quando Milton bateu contra a parede no fim daquela composição, não havia acesso à próxima composição, não havia mais para onde ir. A não ser para fora! Então, empurrando as pessoas que, apavoradas, se contorciam para escapar, ele se esgueirou até a lateral onde estava a saída, agora fechada, segurou a borracha carcomida entre as duas abas da porta do vagão, enfiando ali os dedos e agarrando essas abas com os cotovelos apontados para os lados, e fez força para abrí-las. Forçou uma, duas vezes. Os seguranças cada vez mais próximos. Novamente Steinberg forçou as portas, que cederam, relutantemente no começo, mas se escancarando devido a má conservação no final! A ventania entrava, visto o trem estar em plena velocidade, e Milton parou no limiar da porta aberta, olhando o chão de brita correr abaixo. Virou o rosto, viu que o trem se aproximava de mais uma estação, logo iria desacelerar, se ao menos conseguisse atrasar os seguranças, pensou. E imediatamente se deu conta dos camelôs que pululavam entre os passageiros, sempre tentando vender seus produtos no meio daquele sufoco, pagando propina sempre para os seguranças da linha férrea, mas não raro perdendo tudo que tinham para os caras, quando estes resolviam fingir trabalho para seus superiores. Milton gritou:
— Meganha! Segura os meganhas! — Usando gíria que, em suas infindáveis viagens de trem, ouviu os camelôs usando.
Alguém, para sorte de Steinberg, perdeu o senso de perigo e resolveu agir, pondo uma perna bem no caminho do segurança que já estava quase alcançando Milton, e o cara desabou no chão, seguido do colega. A arma de choque deve ter disparado, pois ouviram-se gritos e estalos elétricos. No tumulto que se seguiu, o trem já estava quase parando na estação, e Steinberg desceu correndo, o fotômetro ainda na mão, esquecido. Girando no próprio eixo, ele percebeu que estava na estação ao lado da Quinta da Boa Vista! Poderia correr para o metrô, e desaparecer por lá. Subiu as escadarias correndo, e talvez tenha sido esse o seu erro ingênuo, pois assim que os seguranças que o perseguiram dentro do trem começaram a berrar (deveria haver um rádio quebrado em algum lugar, um monte deles para os seguranças, os quais a corrupção endêmica brasileira não deixava serem consertados nunca) outros seguranças vieram correndo de cima, e se atiraram sobre Milton, o único cara que parecia fugir, pois estava em disparada. Steinberg foi derrubado, rolando escada abaixo e batendo a cabeça.
Escuridão.
Pobre Homem Louco
Milton despertou numa espécia de enfermaria sem janelas. A porta estava aberta, ele pôde ver assim que se levantou da maca em que havia estado. E assim que ele fez isso, por esta porta entraram os dois seguranças que o haviam perseguido, seguidos de ninguém menos que Rubens, que foi dizendo:
— Foi bom ele acordar, significa que ninguém aqui vai se encrencar.
— Ele é que tá encrencado, chefia. — Disse um dos seguranças, cujo crachá Milton se esforçava mas ainda não conseguia ler.
— Ah, colega, quê isso?
E o Doutor Castilho se aproximou do segurança, despretencioso mas sério, e continuou, em um quase sussurro:
— Olha para o meu amigo. Ele está tendo uma crise, um atque de ansiedade. — e falando em um tom ainda mais baixo: — O pobre homem está louco, passando por muita coisa, não feriu ninguém além dele mesmo. Vamos esquecer isso tudo.
Milton, cuja cabeça latejava, conseguiu ouvir o murmúrio, e fez cara de quem não gostou, mas um instante depois sua expressão mudou. Estaria mesmo louco? Seria tudo aquilo imaginação dele? A certeza que tinha dentro de si, de que o mesmo dia se repetira eternamente, era pétrea, mas sua vida estava começando a ficar tão louca com aquilo, que a certeza de que ele próprio era uma pessoa sã já não era tão forte. Lembrou da Navalha de Occam, de Alice, e se calou, apenas observando enquanto Rubens conversava com os outros homens. O segurança com quem Lewroy iniciou a conversa, em certo momento, fez que sim com a cabeça, e disse:
— Está bem, doutor. Todo mundo tem seu dia de cão. É tanta sacanagem, violência e roubo que tá todo mundo com os nervos estourando.
— É mesmo. Tudo anda tão desanimador. — Concordou Rubens.
— É isso mesmo. A gente parece que tem acesso a mais informação, tipo pela Internet, mas fica sabendo que político tudo é bandido, que copa do mundo é tudo armação, que a vida podia ser bem melhor, mas se depender de quem manda, nunca será, que acaba ficando meio louco.
O outro segurança, mais calado, apenas balançou a cabeça, concordando. O primeiro segurança, mais falante, ficou um momento em silêncio, olhando para Milton, que ainda massageava a própria nuca, e então o sujeito disse:
— A gente também anda cansado. Confundimos ele com ladrão… Faz o seguinte, espera aqui que eu vou avisar a chefia e logo depois liberamos vocês, tá bem?
Lewroy abriu os braços e meneou a cabeça, dizendo simplesmente:
— Obrigado, caras.
Ambos os seguranças se foram.
Milton, constrangido, inseguro quanto a sua própria sanidade, já ia agradecer à Rubens, e perguntar como ele o encontrou, quando Lewroy o agarrou pelos ombros, o fitou olho no olho, a menos de um palmo de distância do seu rosto, e disse, num sussurro, quase selvagem:
— Milton! Escuta, cara! Alice, ela sabe de alguma coisa sobre um projeto que eu e ela participamos, e que eu não sei. Tem haver com o que você apareceu lá no meu trabalho.
— Q-que projeto?
— Uma iniciativa internacional, um experimento prático, que foi levado a cabo há alguns dias. Não interessa, só me escuta: fica longe, muito longe da Urca e da Alice, está bem? Acho que é perigoso, cara, eu tô dando um tempo, vou sair do Rio.
— Como você me achou?
— O Clinton é um amigo meu, Federal. Seu celular. Agora levanta, vem, nem vamos esperar os seguranças, não podem nos manter em cárcere, é ilegal. Vamos, eu te ajudo. Ah, toma isso, estava contigo e eles me devolveram, eu expliquei que é inofensivo, apenas um fotômetro.
Se pondo de pé, e pegando o aparelho das mãos do amigo, Steinberg fez um sinal de que podia andar sozinho, quando o outro tentou apoiá-lo. Apanhou também sua pasta tiracolo, que estava nos pés da maca, a pôs no ombro, e seguiu Rubens, que saiu na frente, mas assim que o físico pôs um pé fora da claustrofóbica enfermaria, este levou a descarga de uma arma de choque, Milton viu o clarão e ouviu o som inconfundível!
Enquanto seu amigo físico desabava no chão, os olhos de Steinberg se arregalavam! Estava encurralado!
Continua na próxima semana, não perca...
Leia a Parte 3 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Comente, participe! Milton está louco?
A segunda e última parte do conto que fiz quando entrei para a Real Sociedade dos Escritores Fantasmas. Se curtiram, participem! Usem os comentários aqui, ou lá na Fanpage, e escrevam suas opiniões, elas serão muito bem-vindas!
Ludmila entrou no imenso pavilhão do Riocentro mostrando seu crachá, e, em seu português fluente, foi dizendo aos seguranças armados de fuzis:
— Jornal Die Welt, Alemanha. Tenho acesso aos debates principais.
O Scan de retina a identificou, e ela pôde passar. O caminho até o Riocentro foi tranqüilo, e ela pôde ver a maravilhosa exuberância do Rio enquanto seguia até o antigo centro de convenções. Depois que se tornou Estado Americano, a cidade era um gigantesco e arborizado conjunto habitacional, cheio de pracinhas delicadas, floridas, onde crianças brincavam. Sem balas perdidas, sem favelas, e muito em breve, o país todo sem nenhuma soberania. Ludmila tinha olhos ainda mais tristes, diante do pensamento. O Rio de Janeiro era um show-room montado pelo ocidente para o oriente.
No meio do burburinho, com toda aquela gente de mídia já saindo das salas de imprensa e indo para o imenso salão de debates, a fotógrafa ouviu uma voz conhecida:
— Lu! Lu, aqui! — Acenava para ela um seu colega fotógrafo, o Moura, que ela conheceu em sua passagem por São Paulo há uns anos, e antes fôra Eduardo Moura Júnior, e agora é um bastante próximo (o mais possível, para ela) o Moura — Venha, querida, temos cadeiras bem lá na frente.
Ludmila agora sorriu, docemente, acenando quase alegremente para o rapaz, talvez por causa das pílulas azuis, talvez por ver esperança no Moura e em seu sorriso franco, talvez por nenhum motivo especial. Mas era justamente aquilo que queria ouvir do Moura: que ele havia conseguido para ambos uma vista privilegiada do maior evento histórico daquela década: a discussão que traçaria metas para o fim das guerrilhas. Ela sonhava há muito tempo com este dia, o fim de todos os atentados.
Ahmed chegou e seguiu pela passagem diplomática, onde, curiosamente, fizeram uma revista bem superficial que pouco o atrasou, e então foi recepcionado por outros chanceleres, seguiu todo protocolo, mas pediu que um homem de sua confiança verificasse e o avisasse quando todos os presidentes estivessem reunidos com suas comitivas dentro do Riocentro. Cerca de uma hora e meia depois, todos estavam presentes, sendo a última a chegar a vice-presidente americana Thierstein. O próprio presidente McAnderson estava muito indisposto, e ficou no hotel em Copacabana, foi o que informou seu homem de confiança a Ahmed.
Todos os líderes mundiais então tomaram seus lugares, que formavam uma meia-lua de vários níveis, no grande palco, deixando os políticos de frente para a platéia formada em sua maioria por jornalistas e personalidades. Thierstein começou a falar ao microfone, em um límpido português de Moçambique:
— Esta é uma noite histórica… — E imediatamente ela foi interrompida por aplausos entusiasmados de toda a platéia.
Ludmila sentou-se na primeira fila. Ela tinha a impressão que o cavalheiresco Moura a estava cantando, novamente, talvez quisesse mesmo tomar uns drinques com ela, depois de tudo. Ela sorriu novamente, agora sem jeito, diante das perspectivas. Foi quando os líderes entraram em cena, e tomaram seus lugares. Ela, e dezenas de outros fotógrafos começaram a enviar fotos e filmes via Internet imediatamente para seus jornais. Sob a miríade de flashes, a vice-presidente americana se ergueu, bela e elegante como sempre, com seus 74 anos, e começou a falar, mas logo sua voz foi coberta pela entusiástica reação da platéia. A própria Ludmila aplaudia intensamente. Foi quando Mhd Ahmed se levantou.
Mhd Ahmed Qanbar disparou.
— Com licença, senhora vice-presidente, mas eu preciso da atenção de todos agora! — Disse ele, levantando ambas as mãos para o céu, e só continuando quando todos os olhares se voltaram para ele: — Acabo de enviar aos aparelhos de todos os presentes, planos dos EUA para o uso de uma nova arma, já operacional, no Oriente Médio. Esta arma produz um pulso orgânico-energético a partir do corpo de um soldado, e este pulso é capaz de destruir completamente qualquer organismo vivo em um raio de 1000 quilômetros! Com alguns homens-bomba estrategicamente posicionados, todo o Oriente Médio, e talvez o mundo, fica a mercê dos EUA! — gritava a plenos pulmões o homem que não disparou os explosivos sob sua responsabilidade nos atentados em Madri. — Vejam os documentos, e acessem os satélites nos endereços anexados! Verão as fábricas que desenvolveram o que eles chamaram de Projeto Jihad!
Os repórteres se acumulavam diante do palco, fotografando, gritando perguntas, se acotovelando, enquanto os líderes mundiais acessavam os dados e demonstravam claramente seu horror diante da nova arma americana. Havia de tudo, inclusive documentos assinados com a chave criptográfica mundial da Casa Branca, as provas eram fartas e contundentes. Tanto que a vice-presidente começava a ser acompanhada para fora do salão por seguranças de seu governo.
— Isso precisa acabar! — Gritava Ahmed — Quantos mais vão morrer por causa da ganância capitalista? A liberdade americana custa sangue! O solo Americano é banhado do sangue do mundo!
— Nós fizemos sim! — Gritou a vice-presidente, em seu estilo decidido, desvencilhando-se de seus agentes, homens e mulheres em ternos negros — Mas porque não suportaríamos mais outro Dia Onze. Quantos houve desde 2001, Ahmed? Quantas vidas e quanto sangue Laden bebeu para se satisfazer? Achamos que nunca teríamos um homem como você na liderança de seu povo, precisávamos ter um modo de dar fim às mortes!
— Destruindo todo o oriente médio!?! — Vociferou Mhd Ahmed.
— Não! — Gritava a bela senhora, agora bastante descomposta — Apenas os líderes! Pelo amor de Deus, não somos terroristas!
— Mentira! Irmãos! — Clamou ele, voltando-se para todos os líderes do oriente médio — Esta noite é decisiva. Ela tem a arma definitiva, mas não tem mais a vantagem da surpresa! Precisamos nos unificar, mostrar a eles que Jihad é muito mais que destruição, pois senão eles vão mais uma vez deturpar o Islã, e usar a Jihad contra nós! Digam agora, se me apóiam, ou morram aos pés do capitalismo!
Houve silêncio. Um silêncio tenebroso. Toda a mídia esperando a resposta dos líderes orientais. Era uma possível declaração de guerra mundial, o início da Terceira, e talvez última guerra. Thierstein deu um passo à frente, indo em direção aos orientais, quando uma voz se fez ouvir no silêncio:
— Isto tem que acabar aqui. Olho por olho. — E Ludmila tomou um comprimido rubro, incandescente, que desceu por sua garganta expelindo radiação e acionando uma série de nano-geradores, indetectáveis, de energia, inseridos em seu corpo por alguém que, como ela, acreditava que o mundo precisava de novos líderes. Ludmila acreditava, há muito tempo, que não havia outra saída, que a única maneira de acabar com o horror dos atentados, era cometer o maior deles, e liquidar os homens e mulheres que mantinham o mundo como ele foi até aqui. E um momento depois Ludmila parecia ser feita de energia azulada e vibrante, expelindo ondas que iam cada vez mais longe, enquanto a moça sorria… Finalmente não precisaria mais das pílulas.
Paz… Por muitos e muitos dias, não se ouviu uma única voz, nem o trinar de o único pássaro. Afora o uivo sombrio dos ventos, quase toda a região sudeste do Brasil foi tomada de uma quietude aterrorizante. A ausência total dos sons da vida.
FIM.
No segundo livro da série space opera C7i: iniciamos nossa jornada pelos meandros da Agência, e começamos a ver que a organização mais poderosa do planeta Terra é tão capaz de cometer erros quanto seus idealizadores humanos, mesmo que eles nem sejam mais tão humanos assim. Enquanto isso, Borges e Milena iniciam a construção de seus laços de amizade e desesperança, enfrentando a morte no mais solitário dos mundos, o espaço. __________ @fraternidadedeescritores #scifibrasil #ficçãocientífica #blackfriday #WagnerRMS https://www.instagram.com/p/CIFBaLTjzJM/?igshid=1ybe4cmwdqfu
ATENÇÃO: Isto é um fanfiction, escrito para servir como crítica de cinema, e não como roteiro comercial, ou seja, sem fins lucrativos. Sugiro que se veja primeiro o filme, e depois se leia o fanfiction, ou melhor, o fansrev (acrônimo de Fan Screenplay Review, ou Revisão de Roteiro Por Um Fã) abaixo. _ Wagner RMS.
Leia: Parte 1 | Leia: Parte 2.
A missão International Space Committee - ISC - Aurora é um esforço internacional de exploração do Sistema Solar, e é composta por (a) veículo (sonda Aurora) que deveria executar sondagens e pesquisas por toda a área próxima a Marte, incluindo asteróides cruzadores da órbita do planeta vermelho; (b) três equipes de pouso, que deveriam se revesar por cerca de 24 meses, nas construção de bases fixas na superfície de Marte, em suas luas, e, se possível, em um dos asteróides visados, e explorar todos estes alvos. A transcrição de gravação abaixo, editada para sua conveniência, seria a versão final do que aconteceu com a equipe de pouso Aurora 2, em seus últimos dias na superfície de Marte antes de serem recolhidos pela sonda Aurora, conforme descrito por Vicente Campos, Oficial Comandante e Engenheiro de Sistemas da missão. A divulgação total ou parcial deste conteúdo é passível de prisão, multa e confisco de bens.
GRAVAÇÃO DE RAIO ZULU 7524 CONECTADO, TERCEIRA PARTE DA TRANSMISSÃO.
O que restou dela. A pele encanecida, cheia de manchas avermelhadas e muito escuras em alguns pontos, albina e quase descarnada em outros. A prateleira que Lane usou estourou o topo do crânio da coisa, mas o rosto estava quase intacto, e naquela escuridão, mesmo naquela treva toda, com as luzes que restaram espalhadas, e nós trêmulos, só Lane lembrando de pegar sua lanterna, todos vimos os traços de Dalby deformados naquela coisa. De repente Lane me deu um puxão e com a luz de sua lanterna, me mostrou um buraco nos farrapos da manga do traje de Dalby. Dava para ver o braço por baixo, e tinha um buraco na pele também. E…
(Silêncio)
Havia algo embaixo da pele dela. Junto com os músculos, ou eram os próprios músculos, eu não sei, não sou biólogo nem médico. A visão era tenebrosa, e asquerosa.
A princípio eu acho que parecia que as próprias fibras musculares dela estivessem se desfazendo, pois no meio do vermelho purulento, sob a pele de Dalby, por entre os músculos, uns filamentos se contraiam e descontraiam, como se uns fios muito finos dos músculos dela estivessem relaxando e retesando, enquanto o corpo morria.
Então Lane me cutucou de novo e eu vi. O foco da lanterna dela, dissipando as trevas num certo ponto do corpo da criatura, mostrava. Os filamentos se encolheram como se fosse aquilo um movimento final, de algo orgânico morrendo, mas quando essas coisas atingiram certo tamanho, eles tomaram vida e avançaram por dentro de Dalby, como aqueles pequeninos vermes que surgem em cantos sujos, onde se decompõem restos orgânicos. Aquilo estava rastejando sob a pele, sobre os músculos, e parecendo, muitas vezes, brotar das próprias carnes do cadáver. E não parava por aí, os vermezinhos se ligavam uns aos outros, enquanto rastejavam, formando rapidamente uma rede, uma malha que cresceu muito rápido, fechando-se sobre e por dentro daquilo que um dia foi nossa amiga Dalby. Mas, de repente, a coisa despertou!
Numa explosão de raiva ou de algum furioso instinto de sobrevivência, Dalby nos derrubou e se arrastou com uma rapidez tremenda para o canto mais escuro daquele lugar, usando pernas e braços para se mover como uma imensa e pavorosa aranha disforme e enlouquecida. E de lá, da escuridão... Ela falou, com a voz agora mais esganiçada, por causa do que Lane fez com ela, acho, e dizendo novamente “parem de brincar!”. E Lane gritou “Espera!” quando eu e Irwin ameaçamos correr dali como se o diabo estivesse atrás de nós. Agarrei Irwin, que berrava e tentava se levantar e correr, e fiz ele calar e parar junto comigo, ameaçando partir o visor do capacete dele.
“Essa coisa. Precisamos entender ela”, a Lane falou pra gente, “talvez se nós escutássemos, e parássemos de... Correr...”. Lane parecia sem ar, quando se arrastou até nós, e nos fitou com seus olhos muito negros e bonitos. Daí, com sua voz mais firme, Lane nos disse “fiquem calmos”.
Lane então se virou, e falou em direção ao cadáver de Dalby, perguntando o que ela era. Foi um silêncio imenso que veio depois da pergunta, enquanto o canto escuro daquela sala parecia crescer na nossa direção. Depois de muito tempo, um suspiro brotou em nossos ouvidos. E depois “Lane?...”, gaguejou a coisa, imitando com perfeição o timbre de Dalby.
“Dalby! Dalby, querida, é você?”, me lembro que Lane perguntou, ansiosa. “Você ainda está aí, querida?”.
Outro silêncio, seguido de uma espécie de choro contido, bem baixinho. Aquela minha ânsia de vômito reapareceu.
“Dalby?...”, murmurava Lane, e do escuro veio a voz em resposta, dizendo, tristonha, algo feito “Lane, eu tô doente… Marko… Ele me machucou…”. Tenho certeza que ouvi Lane soluçar, chorando. Não era ela, eu sabia, mas... Era como se fosse ela ali, falando de novo com a gente.
“Dalby”, disse a Lane fungando, “O que é isso que está… Que está em vocês?”.
“São lembranças, Lane”.
(Silêncio)
Isso pode ser muito importante para vocês aí na Terra. Prestem atenção no que a coisa disse, vou descrever o melhor que eu puder.
(Silêncio. Ruído não reconhecido)
Foi aquilo mesmo que a Da… Que o que foi Dalby nos disse. “São lembranças, Lane”, numa respota de pronto, rápida, e, depois de um tempo quieta, a coisa completou dizendo “Lembranças de um passado muito antigo”.
“Daqui, de Marte?”.
“Sim, Lane, não são minhas, mas agora são minhas também, essas memórias”.
“Não pode ser Dalby”, eu disse, “o cérebro dela tá arrebentado”.
Ouvimos um gemido e um tossir engasgado. E a coisa continuou a falar, às vezes com a voz firme, às vezes gaguejando, mas falando algo sobre ter entendido, através das memórias que eram também dela agora, que a vida em Marte, eu acho, tinha tido muito pouco tempo para nascer, viver e morrer. Houve tempo em que o planeta continha mares e vegetação, mas, na escala do Sistema Solar, claro, isso não durou muito, e Marte começou a perder água e atmosfera, e mais ou menos numa centena de milhões dos nossos anos, virou o deserto que é hoje. Mas, a Dalby disse, a vida lá era tão feroz e obstinada quanto a vida é na Terra. Evoluindo, se adaptando, enquanto o planeta secava, esses organismos marcianos entraram numa espécie de funil evolutivo, geração após geração, aprendendo a sobreviver com cada vez menos recursos, seguindo por caminhos evolucionários onde era se adaptar depressa ou sumir. Dalby tinha sido bioquímica em vida, então devia saber o que estava dizendo.
(Silêncio)
Porra, eu não sei se falei uma merda ou não. Que merda! Aquilo não podia ser mais a nossa Dalby.
(Silêncio um pouco mais prolongado)
Bem, o fato é que aquela coisa nos contou que essa vida marciana sobrevivia a todo custo, em qualquer condição, adormecendo por muito tempo se preciso, e mudando muito, muito rápido pra se adaptar a qualquer fonte de nutrientes. O monstro falou alguma coisa sobre a forma atual daquela criatura ser uma espécie de rede sem centro, tipo a Internet. Eu senti um medo pavoroso quando o troço parou, silenciou, e depois de um tempo disse “eu... Nós ansiamos desesperadamente por um novo mundo. Mas nunca conseguimos alcançar o espaço. Até agora.”.
Enquanto Irwin bufava, de medo e raiva, Lane estendia a mão. Tentei segurar ela, mas ela se arrastou um pouco para frente, e estendeu a mão para as trevas do fundo da sala, para o que ela achava, claramente, que poderia ser a Dalby.
“Dalby, sou eu, a Lane. Somos amigas…”, ela falou, corajosa ou estupidamente, acho que era coragem. E Lane se arrastou mais um pouco à frente, “nós já vivemos em paz antes… Por favor... E se... E se nós ajudássemos vocês?”.
De repente a coisa uivou, em prantos, dizendo “Antes nós éramos a mesma coisa, Lane! Meu Deus! Meu Deus! Lane! Não há mais tempo! Oportunidades! Não podem ser desperdiçadas! Viver ou morrer! Viver ou...”. Lane não teve tempo de voltar, a coisa saltou sobre ela, se atracou com ela! Desta vez, por alguma razão, talvez por causa daquele negócio de fera acuada, Irwin não fugiu, na verdade avançou até mais rápido que eu, e enquanto eu puxava Lane das garras daquela coisa marciana, Irwin, com um pedaço partido da barra de sustentação das prateleiras das plantas, que eu nem tinha visto que ele carregava, batia com incontrolável fúria no monstro que usava a voz de Dalby. Enquanto recebia os golpes brutais e tentava revidar, a coisa gritava, com a voz da nossa Dalby, berrando “Pare, Irwin, pare! Eu não quero morrer, Irwin! Precisa entender! Eu também não quero desaparecer!”, mas o psicólogo não parava nunca, batia sem parar, batia como se nunca mais fosse parar. Irwin gritava “Morre! Morre! Mooorreeee!”, enquanto Lane murmurava algo, chorando magoada, acho que por não ter acontecido um acordo, não sei.
Usando a barra como lança, Irwin agora furava violentamente a coisa no chão, que já estava quase imóvel, o sangue purulento se espalhando por todo lado. Lane me empurrou e se levantou, segurando o ombro do homem descontrolado, dizendo “Para, Irwin!”, mas o cara acertou ela.
(Silêncio)
O filho da puta acertou Lane. O infeliz filho da puta acertou a garota! Eu sei. Sei que ele não tava normal, mas o cara acertou Lane como se ela fosse mais um monstro vindo por trás dele. Girou a barra que tinha nas mãos e bateu com tanta força em Lane, que ela quase voou para o lado, despencando no chão. Eu não sei como fiz aquilo, não lembro, só sei que derrubei Irwin sobre o monstro esfacelado no chão e arranquei a barra de ferro dele. Acho, honestamente, que eu teria surrado ele também até a morte, se não tivesse ouvido Lane resmungando de dor e mágoa, pedindo aos gritos que parássemos. Corri para ela. Na hora percebi que o traje dela, na altura do braço esquerdo, tinha rasgado, e que aquele braço havia sido quebrado. Irwin chegou por cima de nós, implorando desculpas! Lane dizia que tudo bem, tudo bem. Eu estava agindo quase que por instinto para lacrar o traje de Lane, já nem via Irwin, e, claro, nem me dava conta que estávamos em ambiente pressurizado. Todos nós estávamos muito além dos nossos limites, agindo para sobreviver, pouco racionalmente.
Acho que percebi, sem querer ver, na verdade, o ferimento de Lane. A barra de metal havia rasgado não só o traje dela. Havia cortado sua pele. Limpei o melhor que eu consegui o sangue de Dalby, que escorria por sobre Lane, apliquei desinfetante e o curativo adesivo que todos carregamos em kits nos nossos trajes, e, fechando o rasgão no traje dela com grampos, apliquei os polímeros adesivos e vedantes, que aderiram e lacraram o buraco. Fiz tudo conforme o manual, enquanto evitava olhar para Lane, que, eu sentia, me fitava com os olhos ao mesmo tempo cheios de gratidão, lágrimas e raiva.
Minha cabeça girava, eu tinha raiva de Irwin, e torcia para Lane ficar bem.
Não havia mais para onde irmos. Não havia mais salas na cúpula hidropônica. Só nos restava ficar ali com o cadáver estranhamente fumegante e dilacerado, semiescondido na escuridão, do que havia sido Dalby. Ou irmos para o compartimento estanque, na câmara de compressão. Levei Lane até lá, seguido de Irwin que carregava outro pedaço de barra nas mãos. Eu não tinha fôlego para discutir. Assim que nos trancamos na sala de compressão, Irwin foi dizendo que Lane devia estar infectada por aquele organismo alienígena.
CONTINUA…
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